A paixão é verdadeiramente um sentimento desenfreado. O que seria do mundo sem a paixão? O caboclo olhar para outro e sentir o coração disparar, bater descompassado, a boca secar, o suor descer… enquanto o objeto da paixão se transforma no centro de toda a sua atenção. A paixão não tem limites, não tem regras e nem mesmo razão, é um sentimento totalmente irracional… Esta é uma história de paixão acontecida nos anos 1960 da era cristã, aqui mesmo no Sertão da Ressaca, mais exatamente nas adjacências do Vilarejo da Santa Cruz.
Quase anoitecendo lá vinha ele tangendo a sua frota de jumentos. Uma tempestade lascada, um lamaçal danado, raios, trovões, rios transbordando, córregos e lagos alagando as estradas vicinais e ele focado na sua função. Fenelon era um jovem mascate que de quando em vez dava por estas paragens. Neste dia deu o azar de ser surpreendido pela tempestade. A lama e as enxurradas dificultavam a sua caminhada, já que um ou outro animal, estressado pelo barulho dos trovões, empacavam diante de um ou outro atoleiro. Com experiência e sabedoria, o caboclo seguia firme, desatolava aqui, levantava outro ali, alisava um outro mais e mesmo lentamente, seguia. Mais molhado que pinto no ovo, o moço buscava algum lugar seguro onde pudesse passar a noite. Conduzia uma fortuna no lombo dos animais… Grãos, carne do sertão, panelas de alumínio, talheres, tecidos importados e até penico esmaltado. O tempo estava terrível, o perigo de ser atingido por um relâmpago era enorme, isso se não fosse pego antes por alguma enchente. Rezado para todos os santos, o caixeiro-viajante seguia sua sina.
Nesta época o Sertão da Ressaca sobrevivia através dos mascates que vendiam de porta em porta tudo quanto há. Estes moços, fizesse chuva, ou sol passavam todo fim de mês. Nesta região existiam várias fazendas, entre as quais a do velho Zambuco, um nordestino que deu por estas bandas nos anos 1940, tomou gosto pelo lugar e após muito suor conseguiu prosperar e constituir uma linda família, habitando o Rancho Águas Turvas. Zambuco era casado com dona Francisquinha e tiveram 3 filhas, todas lindas e escoladas. Zefinha era a mais velha e mais comunicativa. Era a incumbida dos afazeres da casa grande. Do alto dos seus 40 anos a “senhora-moça”, bonita e prendada, recusara várias propostas de casamentos. À medida que o tempo passava, ela testemunhava incólume suas irmãs mais novas se matrimoniarem enquanto ela ficava para trás. Zefinha já se imaginava uma velha encruada, porém, prometera a si mesma que só se casaria com alguém que o seu coração escolhesse e até aquele momento ninguém chamara a sua atenção, o que mais lhe atormentava era chegar aos 40 sem sequer, saber o gosto molhado de um beijo, uma carícia ou até mesmo um abraço. Isso a deixava fora da sua zona de conforto.
Verdade seja dita, Josefa era a mais linda das três. Corpo sinuoso, curvilíneo, estatura média, cabelos curtos, sedosos, seios fartos, duros e empinados, olhos agateados, sorriso cativante e andar desconcertante. Neste tempo a região fervilhava de tropeiros, boiadeiros, coronéis e mascates que saíam pelas casas oferecendo mercadorias oriundas do sul do país. Estes moços cruzavam o sertão em lombos de animais, embora, alguns andasse de pés, conduzindo seus alforjes na cacunda. Nesta noite chuvosa lá vinha o infeliz do Fenelon puxando seus animais sob a chuva torrencial. Jovem e bem apessoado, o moço tinha a fama de atiçar os corações das donzelas, embora, nunca tivesse passado pelo Rancho do pai de Zefinha. Educado, 18 anos de idade, lia, escrevia e calculava com uma impecável destreza. O rapaz era de tez clara, gostava de usar uma boina de lona, só andava sorrindo e se dizia oriundo da Vila do Poção (hoje é a cidade de Poções). O jovem mascate saía pelo sertão conduzindo seus alforjes e bruacas entupidos de produtos, tornara-se um especialista. Até aquele momento, só pensava em fazer o seu pé-de-meia. Trabalhava feito o diabo, enfrentando diariamente os perigos emanados pelo quase inatingível sertão.
Alas que nesta noite, após visitar dezenas de casebres comercializando suas bugigangas, o moço foi surpreendido por uma tempestade tenebrosa. Após andar por horas perdido em meio à tempestade, o caboclo deu na fazenda do velho Zambuco, lugar completamente desconhecido para ele. Ao ver a casa, imaginou que pudesse pedir pousada, afinal, não tinha alternativa. Todo molhado, usando uma grossa capa de tropeiro, o caboclo abriu a cancela, amarrou os animais e após perceber que não saíra ninguém do imenso casarão, começou a bater palmas na porta.
– Ô de casa, aqui é o mascate Fenelon, fui surpreendido pela tempestade, careço de guarida, tem alguém aí? Sou uma pessoa do bem. Posso pagar com mercadorias fresquinhas chegadas do Sul, tem alguém aí? Por favor, me arranje guarida, a chuva está forte e as águas estão invadindo tudo, me dê guarida pelo amor de Deus! – Gritava desesperado, batendo na porta.
– Ô de casa, tem alguém aí? – Mal terminou de gritar e quem aparece para abrir a porta? Ela, a linda e meiga Zefinha, a mulher-moça. Apareceu toda acanhada, trazendo um fifó na mão, iluminando a escuridão.
– Desculpe moço, não posso deixá-lo entrar. Estou aqui sozinha. Meu pai foi na Vila da Conquista e deve ter sido surpreendido pela chuva. Só pode entrar quando ele chegar…
Os olhos agateados da moça, iluminados pelo fifó, ao cruzarem com os de Fenelon, provocou um efeito devastador. Foi paixão à primeira vista. O impacto foi tão forte que Zefinha quase desfaleceu. Diante da situação o mascate deixou cair o alforje e a segurou delicadamente. Como que hipnotizados, ficaram abraçados um tempão olhando um para o outro.
– Olá, eu sou Zefinha filha do senhor Zambuco e de dona Francisquinha… – Abilolado, Fenelon só conseguiu dizer:
– Meu Deus, como você é linda! Eu… – Mal abriu a boca e já era puxado para dentro de casa. – Como que hipnotizada, Zefinha ficou petrificada diante do vendedor. Como se já o conhecesse há tempos… foi dizendo:
– Lhe esperei durante todo este tempo, sabia que você viria…! – Balbuciou ainda meio tonta. Após se abraçarem fortemente, sentaram-se no sofá e com as mãos entrelaçadas ficaram se olhando mutuamente. Como em um passe de mágica descobriram que haviam sido feitos um para o outro, apesar de ser a primeira vez que se viam. Aquilo era tudo o que Fenelon desejava na vida, logo, abraçados, esperaram pacientemente o restante da família chegar e para surpresa geral, o caixeiro-viajante pediu a mão da jovem senhora, desconcertando completamente o velho Zambuco.
– Oxente, vocês já se conheciam? Que diabo de pressa é essa? Aconteceu alguma intimidade entre vocês, Zefinha? – As explicações duraram uma eternidade, Fenelon se apresentou relatando que apesar de jovem já tinha construído com o suor do seu rosto um “pé de meia” razoável (trabalhava desde os 12 anos) e tinha condições de sustentar uma esposa. Tinha certeza absoluta que um nascera para o outro. Zefinha, leitora voraz, comparou o amor devastador que os arrebataram naquele momento com às histórias dos romances. Embora sem entender o que houvera de fato, seu Zambuco percebeu que o mascate estava totalmente apaixonado por sua filha, logo ela, que havia perdido as esperanças de arranjar um marido. Percebendo sinceridade em Fenelon, deu a sua bênção.
Naquela noite o jovem mascate pernoitou na fazenda, logo pela manhã após um café reforçado, se despediu da família e ao ser conduzido pela noiva até o estábulo – onde estavam os seus jumentos – trocaram o tão sonhado beijo molhado que Zefinha esperara por toda a vida. A moça sentiu as pernas tremerem e foi amparada pelo noivo. Fenelon partiu prometendo voltar para o casório. Um mês depois lá estavam eles diante do altar da pequena igreja da comunidade matrimoniando-se diante de Deus e do Padre Anfilhófio. Foi uma festa lascada com fogos, sanfoneiro contratado, presentes e fartura de comidas e bebidas. Diante da alegria que rolava no ambiente, o casal, doido para o momento esperado, despediu-se dos presentes no auge da festa e correram para o quarto dos fundos onde realizaria o grande sonho de Zefinha.
Assim que se trancaram, as irmãs, dona Francisquinha e mais algumas tias correram para ouvir por entre as paredes. Na época a luz que iluminava a escuridão eram os candeeiros, na penumbra do quarto ouvia-se gemidos sensuais com a troca de carícias. Entre um beijo e outro, foram arrancando as vestes, prometendo se amar eternamente… despidos, na hora da concretização do ato perceberam que ambos eram donzelos. Riram do fato e entre carícias, mordidas e lambidas partiram para a tão sonhada empreitada! O quarto fora feito especialmente para o evento, ficava um pouco distante da casa, mas, a curiosidade das irmãs acabou salvando a vida do mascate. Depois de meia hora de mãos deslizando pelos corpos nus, beijos e gemidos incontrolados, uma insaciável Zefinha, totalmente desnorteada saltou sobre Fenelon e após beijá-lo, introduziu de uma só vez o enrijecido membro do amado na sua genitália. Ouviu-se o barulho de algo se rasgando, sangue esguichando e um berro aterrador acompanhado de um salto tenebroso, fazendo Fenelon se espatifar no piso do quarto.
– O que foi meu amor? Está passando mal, fale comigo, vá? Socorro, socorro… acode aqui! – Gritava Zefinha ao ver na penumbra o noivo rolando no chão, berrando alucinadamente com sangue para tudo que era lado.
– Me acode, me acode, ajuda aqui! – Gritos masculinos e femininos!
– Acode aqui gente, ele está morrendo, ele está morrendo… – Foi quando as irmãs que se escondiam atrás das paredes correram até o salão de festas e interromperam o samba, fazendo que mais da metade dos convidados quebrasse a porta e deparasse com a cena surreal:
Nua e enrolada no vestido de noiva, completamente lambuzado de sangue, a encruada chorava desesperadamente abraçada ao travesseiro, testemunhando o infeliz do Fenelon rolar de dor no chão do quarto, com a genitália em carne viva, cujo couro fora esfolado brutalmente até o pé da sua barriga. Sem muitas alternativas, o enrolaram em um velho cobertor e o trouxeram à força para a farmácia de seu Rufino – a única que existente por aqui.
Ao ver o desespero do rapaz o farmacêutico utilizou a única alternativa que possuía… costurou o tecido rasgado sem anestesia. Fenelon foi amarrado à força na maca e toda vez que o farmacêutico enfiava a agulha, o infeliz gritava tanto que levantava a maca quase um palmo do chão, faltava bater a cabeça no teto. No terceiro ponto a dor foi tamanha que o mascate desmaiou.
Que Fenelon sobreviveu não temos dúvidas, a dúvida ficou em saber se Zefinha (que morreu com quase 90 anos) foi ou não “desdonzelada”, segundo as más línguas, morreu sem conceber filhos e Fenelon nunca mais quis saber de praticar sexo, morreu donzelo.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Dos Confins do Sertão da Ressaca
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Setembro 2025.
Lua Nova de Primavera.