EFEITO JURUBEBA.
Artigos Opinião

EFEITO JURUBEBA.

– Tapioca, freguês, quentinha, docinha, com cobertura de coco, quem vai querer? Quem vai querer? – Meados de 1970, beira da BR-116, ambulantes disputando fregueses no grito e entre eles um galeguinho, fino da grossura de um palito, ágil e pra lá de esperto, chamado Zé Bispo. Neste tempo o que mais acontecia eram mortes por atropelamentos. Em tese, da pista só se sairia defunto ou doutor. Zé Bispo saiu Ph.D. na arte da subsistência. Testemunhou muita surrealidade, como por exemplo, o atropelamento do negrinho Bitelo, três vezes encarreadas pelos carros da Viação Itapemirim. “Barriga verde” e oriundo do Cercadinho, o moço foi vender tapioca na beira da pista e teve um choque de realidade. No primeiro atropelamento levou uma quebra de asa da marinete que lhe rachou o cocuruto e o fez perder os sentidos (e os quitutes que vendia). No segundo, se sentara descontraidamente na roda do ônibus, quando o veículo arrancou de vez, passando sobre a sua bandeja e o jogando em uma valeta. Bitelo ficou todo mochilado. O terceiro foi a pior, o infeliz foi atropelado violentamente, ficou em coma em Conquista por mais de dois meses. Depois, se aposentou de vez da arte de ambulante, ganhando a alcunha de Itapemirim. – Vem aqui Itapemirim, estão lhe chamando!

Após esse “intensivão” na beira da pista, Zé Bispo se transformaria em um dos maiores motoristas da região, viajando constantemente para a capital bandeirantes. A necessidade o transformou em um consumidor voraz de preludinho (um arrebite muito famoso na época), dirigindo dias e noites, totalmente ligadão, sempre no velho caminhão 1113. Chegava com uma carga de todo tamanho, parava em frente ao Atacadão Cocebe, pedia permissão ao gerente, entregava as chaves do veículo e, pra lá de arrebitado, ficava dois dias sem dormir, cortando água em todos os butecos da cidade. Quando chamado, retornava à sua lida fazendo o trajeto Candin/São Paulo. Na época o rio Pardo era o grande atrativo da cidade, com suas cachoeiras e corredeiras. Rezava a lenda que este rio não aguentava ver um conquistense, era aparecer e ser puxado para algum poço. Zé cansou de salvar conquistenses se afogando no rio Pardo. Só andava lá, reunia seus amigos na Areiada, degustava carne assada com canjebrinas e só saía moqueado! Quis o destino que ele fosse o primeiro nativo a adquirir o parasita do schistosoma transmitido pela água contaminada por caramujo. Eis que certa noite lá vinha ele pela longa estrada da vida, açoitando seu velho 1113, entupido até os beiços com produtos para a Cocebe, quando percebeu que os seus sentidos entraram em pane. As mãos ficaram dormentes, uma surdez estranha, um ardor desgraçado nas ventas, a boca seca e curto das vistas, o moço teve que suar para controlar o veículo. Diante de uma descida íngreme, procurou as pernas e quem disse que achou? Logo, percebeu estar paralisado da cintura pra baixo e com todos os sentidos danificados. Teve que usar toda sua experiência para controlar o veículo. Para voltar à Candin a empresa teve que enviar um chofer substituto.

Ao chegar, Zé Bispo foi conduzido à Conquista em busca de ajuda médica. Perambulou meses pelos consultórios até ser levado para as clínicas paulistas e virar objeto de estudo. Meses depois, descobriram que o parasita havia se alojado na sua medula óssea travando o seu organismo, danificando seu fígado, seu pulmão e seu cérebro. Os danos foram irreversíveis. Teve que se adaptar a um novo modo de vida, fazendo suas atividades fisiológicas apenas uma vez por semana, às custas de muito laxante. Aposentado precocemente, o infeliz passou a se locomover amparado por uma muletinha e beber igual uma esponja. Duro era vê-lo embriagado, apoiado no cacetinho e trocando as pernas. Muitas vezes passava vexame por não conseguir chegar ao banheiro, se molhando todinho no caminho. O estudo que fizeram em Zé Bispo ajudaram na cura dos novos casos que surgiram.

Almeida, um advogado da região que pretendia ser candidato, trazia gratuitamente todo dia de feira, seus vizinhos no seu fusquinha. Certa feita, uma catinga desgraçada assolou o interior do veículo, deixando todo mundo sem fôlego: – Que diabo de fedor é esse? Fecha a janela aí Doutor Almeida, deve ter alguma carniça aí na beira da estrada. – Por mais que fechassem ou abrissem os vidros, o fedor continuou por todo o trajeto. Bastou os passageiros desceram para o nobre advogado passar a mão nos fundos das calças e perceber que havia se cagado todinho durante a viagem. A doença tirara seu controle e sua percepção. Escabreado, banhou-se as pressas e para não correr o risco, retornou sozinho, fugindo dos vizinhos.

Em 1990, a secretaria de esporte do município criou com muito sucesso a “Copa Vale do Rio Pardo” com times de Águas Vermelhas, Pedra Azul, São João do Paraíso, Cachoeira do Pajeú, Encruzilhada, Belo Campo, Ajacs e Internacional (times daqui) intercambiando Minas com Bahia. O grande palco deste evento foi o estádio O Ararão. Os embates lotavam o estádio. Foi quando inaugurou uma Churrascaria Rodízio ao lado do Ararão. Além do churrasco, vendiam-se tudo quanto há. Os clientes vips da casa eram Zé Bispo e o amigo Lucinho. Dia de jogo, chegavam logo cedo, escolhiam a mesa e até começar o jogo, solviam etilicamente o que podiam. Alas que um belo dia o time de São João do Paraíso veio jogar aqui. A caravana dos visitantes lotou completamente a churrascaria, fazendo que Zé Bispo e Lucinho se sentassem do lado de fora, em frente ao estádio em uma majestosa sombra. Entra gente, sai gente, chega carro, sai carro e a dupla corvejando. Lá pelas tantas, Zé Bispo não se invocou de trocar de bebida? Deixou de lado a brahma e fundou na Jurubeba Leão do Norte!

– Traz gelo, jurubeba só presta gelada, é bem melhor que cerveja. – Diante da surpresa de Lucinho, Zé Bispo entrou de sola na Leão do Norte bebendo igual água. Vinha uma garrafa ele botava gelo, enchia o copo, virava e já ia enchendo o outro. Lá pras tantas, sentiu a barriga roncar. Estranhou porque ainda faltavam dois dias para tomar o seu laxante. Ignorando o ronco, pediu mais uma garrafa, colocou duas pedras de gelo e sentiu uma dor desgraçada no pé da barriga, disfarçou, tomou a jurubeba, pediu licença e se deslocou amparado na muletinha até o sanitário que ficava entre a cozinha e o salão. Banheiro recém-inaugurado, tudo brilhando, cheirinho de desinfetante no ar, Zé Bispo – amparado pela muleta – se senta confortavelmente no vaso, dá uma leve relaxada e só se ouve o barulhão característico da cagada. Lá no salão, entre espetos de churrascos e farofa de feijão tropeiro, muita gente ouviu o barulho, porém, melhor seguir comendo e esquecer quem evacuava uma hora daquelas.

Passa-se dez minutos, nada de Zé Bispo voltar. Meia hora e nada. Completamente desconfortável, Lucinho se levantou e quando entrou no salão percebeu que boa parte dos clientes faziam cara de nojo, enquanto outros tampavam as narinas. Na hora ele notou que conhecia aquele fedor de outros carnavais. Se dirigiu ao banheiro e ao ver a porta trancada, deu duas leves batidinhas e chamou pelo amigo:

– Zé Bispo, cê tá aí?…, está se sentindo bem? – Diante do silêncio o amigo falou com o gerente, que temendo o pior arrombou a porta e deu com uma cena inusitada. Lá estava o amigo desmaiado, sentado no vaso, todo lambuzado de bosta, emanado um odor desgraçado. Atônito, o gerente tentou camuflar a catinga espalhando bom ar e litros e litros de desinfetantes misturados à água sanitária.… quanto mais esfregava, pior o fedor ficava. No salão rolava um verdadeiro caos, gente correndo, reclamando, tampando as narinas, (muitos meteram o pé, saindo sem pagar). Na dúvida o gerente hesitou se ia atrás dos caloteiros ou acudia o infeliz… optou por chamar os funcionários e tirar o caboclo do vaso. Com cara de nojo, os pobres servidores levantaram Zé Bispo – todo amolecido e melecado – e após dar uma geral na sua bunda branca com jatos frio de água de uma mangueira, o levaram para o quintal. Nunca se viu tanta bosta de uma só vez. Davam descarga no vaso, que completamente entupido, devolvia tudo fazendo uma imundice lascada no salão. Uma velha toalha cobriu a bunda branca do galego, que foi levado diretamente para o hospital. Só acordou no outro dia, ainda com resquício das fezes. Ainda naquela mesma tarde, por mais que lavassem a churrascaria usando toneladas de produtos de limpeza, o fedor continuava atazanando… inclusive, adentrando o gramado e atrapalhando a partida. Os donos da churrascaria arcaram com todo o prejuízo.

Se você quer saber se depois desta Zé Bispo parou de beber, a resposta é não. Bebe até hoje, porém, nunca mais quis ver pela frente uma garrafa de Jurubeba Leão do Norte.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Dos confins do Sertão da Ressaca.

Lua Cheia, Inverno.