O DIA QUE ARERÉ TROMBOU COM WALDICK SORIANO.
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O DIA QUE ARERÉ TROMBOU COM WALDICK SORIANO.

Areré foi uma figura muito querida aqui em Candin, era um negão forte, de mais ou menos um metro e oitenta, cabelo duro, pilheriador, e apesar do duro lascado que dava diariamente descarregando cargas de caminhão, sabia aproveitar muito bem sua vida. Sua diversão era tocar pandeiro (um virtuose) e tomar cachaça. Gostava mais de cachaça que bebê de leite. Tomava todas, falava alto, pilheriava, dançava, tomava boca com as damas-da-noite e era amigo de todo mundo…  O problema de Areré era detestar banho. O negão corria de água igual o capeta da cruz, bastava suar um pouquinho para subir uma catinga tão medonha que não ficava um pé de pessoa perto. Areré também gostava de bater uma bolinha, embora, detestasse qualquer tipo de calçado. Sempre que faltava alguém, era convocado pro baba. Jogava na palheta (descalço).

– Está faltando um aqui, Areré, entra aí!

– Eu furo pra que lado? – Perguntava inocentemente. Furar na linguagem boleira era o mesmo que… “eu jogo pra que direção?”. Tirava a camisa, arregaçava as pernas da calça e fundava dentro. Bola vai, bola vem e ele até que não fazia vergonha. Corria bem. Sabia dar um passe, dominar a bola, marcar bem… o problema era que vinte minutos depois não tinha quem aguentasse a catinga. Era um fedor tão medonho que quando ele entrava na barreira todo mundo tampava as ventas.

Na época o nosso “centro de diversão” era o rio Pardo. Mapeado e batizado pela população com os nomes de Rio da Ponte, Cascalhinho, Curtume, Pedra Sucuiú, Areiada, Rio de Isabel e Banheiro dos Homens que era onde acontecia as sem-vergonhices. Ali era onde a molecada adorava nadar pelado. Muitas vezes se sentavam às margens do rio para disputarem quem “espirrava” mais longe. Sem dúvida era uma diversão. Já a Areiada era onde aconteciam os piqueniques. Nego levava carne pra assar (improvisava a churrasqueira nos próprios lajedos), farofa, frutas, sucos e toneladas de canjebrina. O rio de Isabel era o mais remoto, longe e de difícil acesso, embora fosse a parte mais preservada do rio Pardo. Areré até ia nestes lugares, porém, mesmo tomando todas, ficava bem longe da água.

Quando acompanhava Veríssimo (um dos mais antigos sanfoneiros existentes neste torrão), muitas vezes se via obrigado a tocar no Porto, lá no outro lado do rio. Atravessar Areré era uma apoteose, dava um trabalho lascado. Quando alguém ameaçava virar a canoa ele faltava dar um troço. – Não brinca não, pelo amor de Deus!!!

No ano da graça de 1969, deu por este torrão, sabe-se vindo de onde, o cantor Waldick Soriano. Ia passando pela BR-116, quando ouviu sem querer, a RDC (Rádio de Geraldo do cinema), deu uma bistunta, parou e na hora astuciou uma apresentação. Dinheiro que o ajudaria a seguir com destino à Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Ele e Geraldo improvisaram um violonista e na falta de alguém mais vistoso, Areré herdou o pandeiro e deixou Waldick boquiaberto.  Se hoje Waldick Soriano é considerado um artista clássico, na época, só tinha prestígio no interior do país, muitas vezes se apresentando em circos itinerantes. Sua morte provocou um reconhecimento tardio, até mesmo na sua cidade, Caetité. Foi, sem sombra de dúvida o cantor mais original do Brasil!

Anos depois, quem deu as caras por aqui munido de um possante Dodge Dart? Ele, Waldick Soriano….  a cidade crescera, o cinema mudara para a praça do mercado e se chamava Metrópolis. Querendo matar a saudade deste torrão, o cantor apeou de mala e cuia no Hotel Cinelândia que pertencia à família de Jones – o Delegado. Na época, Jones tinha uma irmã lindíssima de mais ou menos uns 18 anos de idade. Não foi que de uma hora para outra, o velho Waldick não se apaixonou pela garota? Pois foi, arriou os quatro pneus e foi solenemente ignorado.

Assim que soube que Waldick Soriano estava hospedado no hotel, quem baixou lá? Se falou Areré, acertou em cheio. Chegou e foi bater diretamente na porta do quarto do cantor. Passaram a tarde bebendo cachaça, cantando boleros e tocando pandeiro.

Bastou ver Waldick dando sopa nas ruas de “Candin”, para que o empreendedor que existia em Geraldo Gomes, fechasse imediatamente uma apresentação do cantor para aquela mesma noite. Tirou de cartaz um filme de Tarzan, o Rei da Selva e colocou o show. O cinema ficou pequeno para quem queria assistir, diante da pressão, tiveram que remarcar uma nova apresentação para a semana seguinte. Após uma semana, Waldick percebeu que o seu amor não era correspondido. Por mais que tentasse, a moça nem tchum!!! Desolado, um dia antes da apresentação, saiu pela cidade na companhia do panderista, chorando, cantando e bebendo nos bares (e nos bregas) da vida.

A ironia era que após dezenas de Long Plays gravados, apresentações nos melhores teatros do Brasil, tocado exaustivamente no rádio e na televisão, lá estava Waldick, chumbado igual um gambá, chorando nos ombros do negro Areré. Ficou tão bêbado que Arerê teve que levá-lo até o hotel. Ao chegar, o chapa o colocava na cama, com todo o carinho tirava seus sapatos, o embrulhava e saía de fininho, o deixando sonhar com a paixão não correspondida.

Após uma semana de propaganda, chegou o dia da nova apresentação. Uma hora antes o cinema estava mais lotado que comício em beco estreito. Veio gente da região inteira apenas para ver o intérprete de “Eu Não Sou Cachorro Não!”. Na hora do show apareceram logo dois problemões para Geraldo. Um foi à negativa de Areré em tomar banho… Com o cinema lotado, o fedor potencializava.

– Não tomo, não tomo e não tomo! – Dizia ele. – Prefiro aposentar meu pandeiro, mas banho eu não tomo. – Melhor amigo de Waldick e exímio panderista, o jeito foi arrumar uma solução caseira. Fizeram uma mistura de detefon, álcool e desodorante e borrifaram fartamente nos sovacos de Areré. Após disfarçarem um pouco o mau cheiro, o vestiram com um terno branco, um chapéu coco e uma gravata borboleta. Ficaria até apresentável se a calça não fosse tão grande.

O outro problema era um pouco maior… Waldick deu um calundu e negou-se a subir no palco se a sua grande paixão não se sentasse na primeira fila. O pior foi que a irmã de Jones se negava veementemente a comparecer ao show. Foram necessárias muitas negociações, inclusive, envolvendo o prefeito e vereadores. Quase uma hora depois chegou o recado que a moça chegaria atrasado. Contrariado, o cantor iniciou a apresentação virando um litro de conhaque.

Após cantar com a sua inigualável voz o sucesso “Tortura de Amor” … – “Hoje que a noite está calma e que minh’alma esperava por ti… Apareceste afinal, torturando este ser que te adora… Volta, fica comigo só mais uma noite… Quero viver junto a ti… Volta meu amor, fica comigo, não me desprezes… a noite é nossa e o meu amor pertence a ti (…)” -, Waldick levou a plateia ao clímax cantando o seu grande sucesso “Eu Não Sou Cachorro Não”.

Música vai, música vem, um violonista conquistense dando o tom, Areré suando igual cuscuz dentro do terno branco improvisado e Soriano de olho na cadeira vazia e nada da garota chegar. Entre uma música e outra ele ia entornando canjebrina. Após cantar a música “A Dama de Vermelho” com a voz meio embargada (Não se sabia se era a cachaça ou a ausência da moça), o artista ameaçou parar se a “musa” não aparecesse:

– Se ela não vier, vou parar minha apresentação agora! Eu só vim aqui cantar para ela! –  Mal acabou de falar e adentrou o recinto – abrindo passagem em meio à multidão – em um lindo longo vermelho, a grande paixão de Waldick Soriano. Cabelos loiros, longos e trançados, um ousado decote e o vestido realçando divinamente as suas curvas. Vinha meio que flutuando entre os pobres e mortais espectadores.

– Abram alas – Gritou o cantor no microfone. – Deixa a Dama de Vermelho passar… – Não faltaram babões para conduzi-la até a cadeira, bastou se sentar para todo o cinema se levantar e aplaudi-la.

– Aí está ela, a grande paixão da minha vida! – Falou o cantor deixando a garota ruborizada. Pouco à vontade, a dama cruzou as pernas, deu um sorriso amarelo e ficou assistindo. Entusiasmado, Soriano bebeu logo o que restava da garrafa, pediu Areré para abrir outra e após dedicar à música “Paixão de Um Homem” para a moça, bêbado feito um gambá começou a cambalear em cima do palco:

– Amigo, por favor leve esta carta e entregue àquela ingrata, diga como estou, com os olhos rasos d’água, o coração cheio de mágoa, estou morrendo de amor… Amigo, eu queria estar presente para ver o que ela sente quando alguém fala em meu nome, eu não sei se ela me ama, eu só sei que ela maltrata o coração de um pobre homem(…)” Enquanto o cantor fuzilava a moça com os olhos, fora da sua zona de conforto, ela retribuía com sorrisos acanhados. Lá pelas tantas, ao dar um passo em falso, Waldick perde o equilíbrio, se balança igual um pêndulo de um lado para o outro e quando Areré vê o amigo prestes a despencar palco abaixo, sapeca longe o pandeiro e após um voo digno dos melhores goleiros do mundo, agarra Waldick em pleno ar, caindo entrelaçados, tendo o artista a sorte de cair por cima.

Entre mortos e feridos salvaram-se todos. O cantor não teve um arranhão, Areré ficou com pequenas escoriações (nada que alguns goles de pinga não resolvessem) o show foi paralisado sob intensos aplausos e Waldick se deliciou nos braços da garota que ao vê-lo cair foi a primeira a correr pra socorrê-lo. – Amor, você se machucou? Fala comigo!… – Enfim, o cantor conseguira o que tanto queria.

Depois deste dia, Areré passou a ser muito famoso na região. Rotulado como o amigo do peito de Waldick Soriano, passou a fazer shows a torto e a direito pelas cidades vizinhas. Waldick se foi e nunca mais apareceu por aqui. Deve ter se esquecido da Dama de Vermelho!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Dos Confins do Sertão da Ressaca.

Cândido Sales, Bahia. Quadras de julho de 2025.

Crescente de Inverno.