Candin tem uma linguagem muito peculiar, ao intitular este conto/crônica devo dizer que o título acima, aqui neste torrão, além de muito usado é sinônimo de encrenqueiro, baderneiro e até arruaceiro. Não é atoa que temos o apelido de “Candin Capadô”. É possível que este nome tenha contribuído para a gerar a enorme quantidade de rusgas que fervilharam este torrão ao longo do tempo.
Nos anos 1960, toda semana tinham brigas apoteóticas na feira. Nego digladiava de facão, punhal e todos os tipos de armas de fogo. Era cada tumba de lascar o cano (O coronel Célio Alves que o diga). Eram horas de peleja, com os oponentes usando tudo o que podiam. Deixavam para trás aquele rastro de sangue e destruição, com dezenas de barracas destruídas, bruacas mochiladas, mantas de carnes, taiobas, jerimuns, macaxeiras e farinha misturados ao sangue e lama.
O valentão mais famosos deste torrão era Paulo Figueira. No início dos anos 1970 o filho de dona Quitéria, que era de família influente, fazia muita gente correr. Vira e mexe lá estava o moço trocando tiros a torto e a direito no meio da rua. Outro valentão que existia aqui era Coelho (o orelhudo), filho de Dona Mosquita Parteira que morava na rua do campo. Este moço ficou um tempão em São Paulo e voltou cheio de marra, ao dar de cara com Paulo Figueira, emendaram os bigodes e após dois dias encarreados jogando truco, se desentenderam e saíram no tapa. Coelho foi em casa, armou-se de uma peixeira e voltou fungando de ódio. Paulo já o esperava com o seu 38 de estimação engatilhado. Com o sol por testemunha, Paulo viu Coelho marchar armado em sua direção. Pressionado, perdeu o senso:
– Vou lhe mandar pro inferno agora, fila da puta! – Falou descarregando a pistola no desafeto. Deu seis pipocos e só acertou a orelha do infeliz (que era enorme). Percebendo que o oponente estava sem balas, Coelho partiu pra cima fazendo que o valentão picasse a mula. Não conseguiu matá-lo, mas o deixou com as costas mais rabiscadas que quadro negro. Ninguém matou, ninguém morreu. Coelho voltou pra São Paulo e Paulo reapareceria tempos depois, tocando terror na cidade.
Neste tempo, existia também por aqui o soldado Dino, cuja diversão do caboclo era trocar balas quase a queima roupas com qualquer valentão. Paulo, vira e mexe, dava as caras por este torrão. Quando chegava, antes mesmo de visitar os parentes, procurava Dino. Embora se odiassem mutualmente, quando se viam, se cumprimentavam, trocavam calorosos abraços e como grandes amigos se sentavam no hotel de Dona Nely, onde bebiam todo o estoque. Bastava chumbarem para a amizade ir para as cucuias e aí, cachorro lascava o rabo! Cada um sacava seu trabuco e saíam dando tiros um no outro. Geralmente os dois ficavam mais furados que tábuas de pirulitos, porém, nada que um carro ligeiro não resolvesse. Conduzidos urgentemente para Conquista, eram tratados e três meses depois davam sequência à rusga exatamente de onde pararam. Esta cena foi exaustivamente repetida. Ambos já partiram desta para outra, porém, por mais que tentassem, nenhum teve a competência de dar cabo no outro.
Agora, encrenqueiro mesmo, era Sivaldo, o índio. Este moço conviveu por aqui em meados dos anos 1970. Moreno, alto, cabeludo, paramentado de hippie… se hospedava no Lírio Hotel de seu Lindolfo e distribuía com um invejável profissionalismo sua canabis sativa importada de São Salvador. Só vendia para pessoas de boas índoles (como gostava de dizer), tinha um nome a zelar e não podia vender pra qualquer pé de chinelo.
Enquanto distribuía o seu “produto”, Sivaldo vivia intensamente cada minuto da sua vida. Adorava mulher, dinheiro e cachaça – não necessariamente nesta ordem. Ficava uma semana curtindo a mulherada. Bebia tudo quanto há. Alas que em uma destas visitas, atrasou o pagamento do hotel, seu Lindolfo foi cobrar e ele se retou, “falou as do fim” pro velho, que deu um calundu e correu pra pegar a sua espingarda dois canos. Enquanto seu Lindolfo se armava, Sivaldo muniu-se de um martelo e se escondeu atrás da parta que dava acesso ao salão das refeições. Lá vinha seu Lindolfo todo afoito pelo imenso corredor do hotel, enchendo a espingarda de cartuchos quando Diacísio que tinha uma tenda de cabelos ao lado, percebeu que Sivaldo o mataria com uma martelada. Correu e conteve o hoteleiro antes que fosse tarde. Sivaldo saiu rindo com o martelo na mão. Naquele dia, graças aos céus, Diacísio evitou a morte do infeliz. Sivaldo continuaria na cidade, embora, migrasse de mala e cuia para o hotel concorrente.
Algum tempo depois, o Índio chegou à cidade munido do seu inseparável tiracolo de couro e antes mesmo de distribuir o esperado conteúdo para a sua seleta clientela, caiu nas graças de Madalena, uma linda capixaba de olhos negros e puxados, cabelos longos e coxas roliças. Madá – como era conhecida – era extremamente carinhosa, tinha um charme envolvente e falava com uma vozinha de criança. Um cheiro no cangote, um aperto nas nádegas, um “suspiro aprumado” e dois dedos de prosa depois, lá estavam eles no Rio da “Areiada” em um coito de deixar Emanuelle envergonhada. Na época este cambaleante Rio Pardo era magnífico. Ali, curtindo a natureza, deitados sobre os lajedos, pelados como vieram ao mundo, o casal se deliciava com a visão dos peixes pulando na queda d’água, cenário apropriado para dois excitados corpos, cujo barulho da água nas rochas servia de trilha sonora.
Vício é uma desgraça!… morrendo de vontade de apertar e acender, Zezão e Marcolino, consumidores jovens e impetuosos, ao invés de esperar, resolveram ir até a “montanha” – no caso, Sivaldo – para ver se o cabeludo adiantava uma ou duas pontas para eles matarem à vontade que os dilacerava. Impacientes, desceram correndo para o rio e deram com Sivaldo entrelaçado fogosamente com a morena em cima dos lajedos, uivando igual um lobo, enquanto a tiracolo de couro dava sopa acomodada em uma fresta da loca. Um olhou para o outro, o outro olhou para o um e sem dizerem uma palavra, rastejaram sorrateiramente até a pequena bolsa de couro. Logo, desembestavam ladeira acima levando o pacotão de ervas selecionadas. Zezão (o mais esperto), incumbido de guardar a “mercadoria”, colocou em vários sacos plásticos e enterrou em um buraco profundo no fundo do seu quintal.
Depois do êxtase e entre um beijo e outro, o índio resolveu dar uma relaxada. Pelado como veio ao mundo se dirigiu à tiracolo e ao meter a mão descobriu que o seu tão precioso produto evaporara. Adivinha aí quem pagou o pato? – Benzinho, cadê meu haxixe?!!
– Ué, é eu que vou saber?!!! – Perguntou uma incrédula Madá.
– Madalena, sua ladra safada!!! – A infeliz levou uma surra tão lascada que ficou com o rosto todo desfigurado. Ao perceber que a capixaba era inocente, Sivaldo voltou para buscar uma segunda remessa, enquanto Zezão e Marcolino comercializava a erva pela metade do preço.
Mas alas que Pio (Pompilo Doido), tinha um primo chamado Arlindo – que vira e mexe dava as caras por aqui. Não foi que este primo de Pio não deu de encontrar Sivaldo na antiga Toca da Onça? Pois foi. Viraram uma noite jogando sinuca apostado e bebendo todas. Conversa vai, conversa vem, se desentenderam e após um tumba generalizado, onde nem a reforçada banca de sinuca escapou, o índio meteu a faca no “sãopauleiro” que só não morreu ali, porque mesmo sangrando, teve a competência de pular o imenso muro da Boate e se misturar às pilhas de baraúnas que existiam no fundo. Ninguém morreu, ninguém matou e após alguns meses, eis Sivaldo retornando a este torrão. Distribuiu profissionalmente o seu “produto”, se engraçou pros lados de uma galega, e após navegarem nos lençóis de cambraia, dormiram o sono dos justos. Se levantou meio-dia e saiu de bar em bar enchendo a cara. Neste ínterim, quem estava observando o desafeto por todo este tempo? Arlindo. Após estudar os hábitos do cabeludo, preparou seus cartuchos com rolimãs, pregos e tachinhas, jogou a arma em um saco de estopa e seguiu o desafeto. Sivaldo saía às ruas cumprimentando todo mundo com uma irretocável educação! Entrava em um boteco, tomava uma, trocava dois dedos de prosa, brincava com algum conhecido, sempre com o seu jeans apertado, sua bata hippie e a faixa contendo a imensa cabeleira.
Todos os passos do infeliz eram acompanhados à distância por Arlindo. Sivaldo entrou nas Casas Miranda, tomou um conhaque, fez uma piadinha e quando ia saindo, lá estava Arlindo lhe tocaiando. Com toda a calma do mundo mirou na sua cabeça e apertou o dedo… Bastou atirar para metade do couro cabeludo de Sivaldo se desprender do crânio e se fixar violentamente na parede lateral onde estava escrito em letras garrafais o nome do comércio. Atirou novamente e Sivaldo moveu-se com uma impecável destreza fazendo o indivíduo errar o tiro. Tonto e todo lambuzado, o agora ex cabeludo sacou o seu punhal, partiu pra cima de Arlindo que sapecou esta espingarda no chão e “pernas pra que te quero”. Corre aqui, cai ali e Sivaldo atrás espetando o vento. Desesperado entrou no hotel de Pernambuco, Sivaldo entrou atrás e hábil como era, Arlindo saltou o muro deixando o índio caído no outro lado.
Conduzido à farmácia de seu Rufino, nada que uma boa limpeza e alguns pontos não resolvesse. Como tinha uma cabeleira imensa, o tiro atingiu somente as madeixas que ficaram fixadas na parede lateral das Casas Miranda por mais de um mês, para quem quisesse ver. Virou até atração para os visitantes da cidade, todo mundo que passava parava pra olhar o escalpo do índio Sivaldo, preso na base da bala na parede de alvenaria. Pois é. Candin nunca foi pra amadores!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Dos confins do Sertão da Ressaca.
Cândido Sales -Bahia, Quadras de Julho 2025. Minguante de Inverno