Pois é, amanhã (5 de julho de 2025) Candin comemorará mais um assentamento de eras. Parece que foi ontem que este torrão era “destamanhinho”, cresceu – meio desordenado, é verdade – e está virando um idoso. São 63 anos de luta. Apesar dos pesares, ainda é um bom lugar para se viver. Sendo assim: “Congratulations, Candin”, vida longa e fé! Continue gerando esta renca de histórias que nos motiva a escrever semanalmente.
Aproveitando o ensejo, lá vamos nós relatar mais um causo que sacudiu as nossas estruturas. Em meados dos anos 1970, lá estava o conjunto mandando ver. Gente feito o diabo… o vocalista empostando a voz, cantando de olhos fechados as cantigas da moda, o baixista pulsando seu instrumento, o guitarrista tirando solos inimagináveis e o baterista cheio de mungangas, fazendo bonito pra mulherada, repicando o couro em um barulho ensurdecedor… e, em meio à luz negra, casais dançando coladinho, rosto com rosto, corpo com corpo, mãos ousadas roçando pelos arrepiados… tudo ia bem até emanar uma catinga lascada dentro do salão, um fedor tão desgraçado que chamuscava as ventas de quem estava presente. Inicialmente, quem sentiu aquela carniça, imaginou ser uma bufa mal dada por algum degustador de buchada ou mocotó. Não era. Quanto mais o tempo passava, o fedor piorava, o jeito foi os dançantes correrem tampando as ventas.
– Que catinga da porra é essa? Jogaram alguma carniça lá dentro, foi?! – Virou um caos, gritaria, empurra/empurra, desespero e xingamentos. Não restou um pé de pessoa no salão, os últimos foram os músicos, cada um levando seu instrumento em uma das mãos e tampando as narinas com a outra. Para um melhor entendimento, voltemos um “cadinho” no tempo.
Candin demorou um lote de tempo para tomar termo. Terra de nômades, gente de tudo quanto há, até a data da emancipação os bailes que aconteciam neste torrão traziam sanfoneiros, violonistas e panderistas locais. Toda noite tinha algum caboclo interpretando (do jeito que desse) as páginas musicais da época, ao vivo e sem microfone no Cabaré de Ana Calanga. A partir dos anos 1970, o advento dos “sãopauleiros” desaguando de mala e cuia por aqui, modificou completamente os bailes. Para trás ficavam o chapéu de peninha, o relógio de pulso e o rádio de pilha. Sãopauleiro que era “sãopauleiro” trazia mesmo era uma radiola à pilha. Tanto que o produto mais comercializado nas nossas vendas eram os “alimentos” (pilhas de zinco/carbono) que impulsionava na vitrola um prato giratório, fazendo a cápsula fonocaptora com agulha, ler as ranhuras do disco através de um braço conduzido sobre o vinil, amplificado e reproduzido por um par de alto-falantes. A chegada deste povo era sinônimo de festa, geralmente na sala da própria casa. Quando os “alimentos” do toca-discos começavam a “baterem bielas” e o cantor engrossar a voz, era hora de capar o gato! As pilhas estavam arriando e consequentemente, a festa acabando. Todo mundo ia embora.
Os discos eram sempre os da moda, adquiridos nas feiras paulistanas:
– Bom dia, seu Eurípedes. Estou voltando pra Bahia, num sabe? Queria que o senhor me vendesse um quilo de discos dos bons.
– Apôis é pra agora, seu Franciscano, tem preferência?
– Não senhor, sendo música boa, pode ser tudo quanto há!
E assim o feirante pegava aquela renca de vinis sem capas, empenados, arranhados e empoeirados, botava tudo em uma balança, comprovava o peso, enrolava em um jornal velho e passava para o infeliz. Satisfeito, o “são pauleiro” trazia para a Bahia uma variedade de artistas: Roberto Carlos, Os Vips, Vanusa, Diana, Antônio Marcos, Odair José, Jerry Adriani, Zé Roberto, Wanderléa, Márcio Greyck, Waldick Soriano, José Augusto, Os Fevers, Renato e Seus Blue Caps e coletâneas internacionais como Hit Makers e Pop Hits. Já apeava do ônibus pensando na festa. Encontrava os parentes e amigos, comprava dois litros de pinga, faziam batidas de limão e maracujá e quando a noite caía a casa se entupia de gente dançando à luz dos candeeiros. A mulherada dava uma surreal beleza ao evento e enquanto as pilhas durassem a festa era garantida.
Ali pelos anos, 1972, João Sarapião – um dos comerciantes mais ricos da cidade – resolveu surpreender os moradores dando uma festa em homenagem ao seu filho que havia terminado o ginasial. Empolgado com o progresso do seu primogênito, ao invés de fazer a tradicional festa com toca-discos, o comerciante resolveu contratar foi um “Conjunto” diretamente da cidade de Medina (MG). Era uma época que por aqui, sequer, tinha um espaço decente para uma realização deste quilate, assim, o jeito foi o rico empresário emprestar às pressas um dos dois prédios escolares da cidade. Enquanto duas das salas eram reservadas para se dançar, a terceira era travestida de bar com comes e bebes dando no meio da canela. O Conjunto ficava no pátio, as caixas de som distribuídas nas salas e… cachorro lascava o rabo!
Joãozinho Sarapião – filho de “Joãozão” –, era um moleque franzininho todo metido a sebo, usava suspensórios e óculos de grau, após um ano de estudos em Conquista foi admitido para cursar o colegial. Empolgado, Joãozão pai saiu convidando gatos e cachorros. A entrada seria franca desde que o convidado aparecesse “bem-trajado”. É desnecessário dizer como ficaram os munícipes, aguardando ansiosamente o evento.
Por aqui neste tempo existia um caboclinho feio de doer, prosa ruim de dar azia, “encrenquerim” feito o diabo, alcunhado de Giba. Magérrimo, malandro, cabelo duro, preguiçoso, arengueiro e filho dos donos do Lírio Hotel, um dos melhores da cidade. O caboclo era um tremendo prosa, talvez por isto tivesse tanta dificuldade em conseguir uma namorada. E olhe que não era por falta de tentativas. Ao bater na casa dos 20 anos sem conhecer um beijo de língua, Giba partiu para o tudo ou nada. Quanto mais assediava as garotas, mais elas fugiam. Eis que o advento da festa caiu como uma luva pra ele.
– É agora ou nunca, desta vez eu arranjo uma namorada! – Três dias antes do baile, o garoto atentou tanto dona Leocrácia – sua mãe – que a pobre velha não resistiu. À contragosto, abriu a lata de açúcar que guardava à sete chaves, e, após retirar uma quantia vultosa, levou o filho adotivo até Conquista onde comprou a beca da festa.
Foi descer da Viação Santo Elias carregando na cacunda um lote de caixas, bolsas e sacolas, para Giba ter que driblar os curiosos que queriam a todo custo saber o que ele comprara. Mesmo diante da pressão, não mostrou a ninguém. Eis que chega o grande dia, e, lá estava a cidade espremida dentro do velho colégio – pintado às pressas para causar uma boa impressão. O incômodo, era que praticamente todos da festa usavam o mesmo figurino… Calça US Top, bambas coloridos e “camisão” – último grito da moda (pelo menos por aqui). Como o nome diz, o camisão era uma camisa lascada de comprida que cobria a bunda todinha. Quem usava, tinha um passaporte (quase) garantido para paquerar as donzelas. Não foi que Giba adentrou o ambiente com um dos camisões mais bonitos da noite? E o tênis? Um “bamba” vermelho tão chamativo que se enxergava à distância. O cabelo, duro e crespo foi empapuçado de brilhantina Glostora (uma espécie de creme gosmento) facilitando o penteado estilo Elvis Presley e que brilhava no escuro. O cheiro inebriante da alfazema que o moço usava se espalhava fortemente pelo ambiente!
A chegada de Giba provocou alvoroço à festa, causando inveja até no anfitrião, Joãozinho Sarapião. Já chegou apertando no “iê-iê-iê” dançando todo animado, jogando a bunda prum lado, os quadris pro outro, acompanhado de uma renca de caboclas lindíssimas beijando para tudo que era lado. Giba arrasava no salão, deixando boa parte das fêmeas com as calçolas molhadas e os marmanjos morrendo de ciúmes. Que diabo estava acontecendo com o prosa ruim?
Quando Giba se achava o rei da cocada preta, o diabo da banda deu de promover um intervalo (pois é, neste tempo tinha até intervalo, que era quando os componentes do conjunto paravam para tomar umas e outras e beliscar uns petiscos). Empolgado, Giba que era um inveterado sovina e jamais tomara bebida alcoólica na vida, pagou logo uma rodada de caipirinha e coou no gargalo um litro inteirinho de conhaque São João da Barra. Não demorou para o infeliz ficar completamente chumbado. Chumbado e inconveniente! Daí pra frente só foi vexame… Bastou a festa recomeçar para que bêbado e ensandecido, o cabra começasse a rodopiar feito um abilolado. Falava cuspindo na cara dos presentes, passava a mão nas partes íntimas das garotas enquanto tentava beijá-las à força. Cai aqui, cai ali, cai acolá e logo, como que por encanto, não ficou ninguém perto dele… Desolado, o coitado saiu da sala recitando aos berros a música do Trio Nordestino:
– Cadê as muié, onde é que tá, venha cá muié, vamo chamegá… – Sentindo que a mulherada fugia dele, passou a dançar com os homens, pegava um era empurrado, pegava outro, levava um safanão e logo deu de beijar os músicos, paralisando o baile, sendo sutilmente “convidado” a se retirar. Ao ser jogado do lado de fora, sentiu a barriga roncar feito um trator, possivelmente efeito da feijoada que traçara no almoço. Trôpego, caminhou até as bananeiras que existiam nos lados… tirou a calça US Top, agachou-se e deu a maior cagada da sua vida! Ô alívio danado!
Sem Giba, os “amigos” curtiram felizes o baile… a luz negra deixando o ambiente romântico, a luz estroboscópica piscando, o romance pipocando no ar… Os músicos solando seus instrumentos, nego batendo coxa, rostinho colados, sussurros nos pés de ouvidos… Tudo muito legal até Giba voltar sorrateiramente ao recito, completamente cagado, com a calça caindo, mostrando a cueca toda lambuzada, com bosta espalhada pelo bamba vermelho e por todo o camisão. E ainda queria porque queria abraçar todo mundo. Foi um fuzuê!
Quando a catinga invadiu o recinto, não restou um “pé de pessoa” dentro do salão, virando uma gritaria lascada com gente correndo, pulando janelas, fugindo pelo telhado… Os últimos a fugirem foram os componentes do “conjunto”, conduzindo desesperadamente os seus instrumentos (inclusive a bateria), tampando grotescamente as ventas!
João Sarapião pai teve uma crise de infezação tão disgramada que só não agrediu ali mesmo o “cagão”, porque foi contido por Joãozinho Sarapião, que fez questão de ele mesmo dar uns safanões no infeliz!
A verdade, foi que, por mais que Sarapião pai, completamente desesperado, prometesse dobrar o cachê da banda para prosseguir com o baile, nenhum músico topou encarar aquela empreitada!
A primeira festa social de Candin acabou ali mesmo, graças à presença inoportuna de Giba. Evento que entrou definitivamente para a história como o mais completo fiasco já realizado neste torrão.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Dos Confins do Sertão da Ressaca
Cândido Sales, Bahia. 5 de Julho de 2025.
Assentamento de era deste torrão.