Dia deste contei aqui mesmo neste espaço a peleja do quilombola João Braúna com o famoso Coronel Onofre. Hoje vamos falar mais um pouco deste personagem que chamou a atenção dos moradores da região inteira em meados dos anos 1970. Rezava a lenda que Braúna tinha parte com o Tinhoso, tanto que as más línguas (sempre elas) afirma com relativa convicção que enquanto o corpo de João Braúna era velado, com as rezadeiras entoando as ladainhas houve uma ventania fortíssima e quando procuraram o corpo não acharam nem sinal. Dizem que enterraram apenas o caixão vazio na sepultura do negão. Só sei que histórias, João Braúna deixou às pencas, sendo assim, melhor contá-las.
Quando eu trabalhava no Atacadão Cocebe, algumas vezes estive cara a cara com Braúna. Sabendo da sua fama, eu ficava de longe só observando sua “malandragem”, evitava um contato mais direto. Esperto feito o cão, vira e mexe lá estava ele passando a perna em algum companheiro de lida. Ou levava a feira de alguém fingindo ser a sua, ou tomava o dinheiro do tolo no jogo de dados ou até mesmo subtraia o dinheiro do bolso de algum roceiro desavisado, a verdade era que João sempre se dava bem. Marreteiro nato, o caboclo andava sempre sorridente, saltitante e era pra lá de conversador, era daqueles malandros que dava nó em pingo d’água.
Bon vivant, além de cortar uma água lascada, usava uma grupo folclórico de cateretê, uma dança derivada da catira (dançada com o auxilio de uma espécie de bastão) para obter prestígio. Durante a dança improvisava-se uma espécie de luta com os bastões demarcando o ritmo, batendo uns nos outros. Quando convidado, Braúna trazia vários quilombolas da sua região (Distrito de Encruzilhada – Bahia) para se apresentarem no vilarejo durante os festejos de Natal ou santos Reis. Claro que cobrava pela apresentação, inclusive comendo e bebendo o que havia de melhor. O povo aplaudia demoradamente estas apresentações. Confesso que achava aquilo lindíssimo, lembrava vagamente o candomblé, porém, era ainda mais bonito. Braúna era o líder daquela comunidade negra, pobre e feliz. Podia fazer chuva ou sol, lá estavam eles com um sorriso no rosto, para eles não tinham tempo duro. Após a apresentação, a comunidade aplaudia demoradamente os quilombolas.
A história de Braúna começa quando ele com dez anos de idade, ao brincar de “tonga” com a molecada do quilombo, tropicou e caiu dentro de uma fossa extremamente profunda, sobreviveu (segundo os arengueiros) porque na ânsia da morte fechou às pressas um pacto com o “Tinhoso”. Muita gente confirma que o negro, apesar de ser retirado do buraco aos pedaços (com múltiplas fraturas expostas), já estava literalmente jogando bola e pulando cercas, dois ou três dias depois.
Os arengueiros sustentam ainda que após completar treze anos de idade, em plena quaresma, Braúna adentrou a mata, após ficar cerca de três dias e três noites recluso, retornou na noite de sexta da Paixão trazendo debaixo do “subaco” um ovo de urubu albino. O ovo surrupiado era do tamanho de um ovo de galinha e foi fecundado debaixo do braço esquerdo do negão por quarenta dias e quarenta noites.
– O que você tem aí debaixo do “subaco”, menino? – Perguntava os curiosos. O afro-americano se fazia de desentendido e saía à francesa sem dar a resposta. Enquanto o ovo era chocado, durante a noite Braúna delirava de febre. Deitado no seu leito suava mais que cuscuz e falava uma linguagem que ninguém conseguia entender, tanto que seus irmãos, temendo a sua partida prematura, buscaram quase que a força a ajuda do Padre Anfilhófio – na época, responsável pela igreja do Porto de Santa Cruz.
– Padre de Deus, salve o nosso pobre irmão. Ele está nas tábuas de Moisés, estamos vendo a hora de ele bater a caçoleta.
– O que ele tem? – Perguntava o Padre após rodar 17 léguas e meia no lombo de um burro e ficar cara a cara com o infeliz ardendo em febre, mais vermelho que brasa atiçada por fole.
– Não sabemos, Pádi. Ele tem essa febre lascada que o senhor está vendo, tem dias que chega chamuscar o colchão de pâina. É a noite todinha suando e falando embolado. Ninguém sabe o que ele fala. As vezes fica apontando pra parede como se estivesse vendo alguma coisa. – Diziam os familiares.
– Quando foi que começou esta febre? – Indagou o Padre pra lá de desconfiado. – Foi depois do acidente?
– Foi. Assim que se recuperou, ficou uns dois ou três dias completamente endiabrado, gargalhando, pulando, subindo em árvore, dando cangas… e até correndo em cima das telhas. Uma noite se levantou meio sonâmbulo, entrou na mata e ficou três dias e três noites desaparecido. Voltou mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta. E desde então está assim. Sequer nos dirige a palavra. Tem alguma coisa escondida debaixo do subaco que não tem cristão que o faz mostrar. Passa o dia inteirinho esfregando o subaco esquerdo.
– Ah, meu Deus do céu. Se for o que eu estou pensando o Tinhoso se apossou da alma de João. Traz aí, esse menino, a água benta. Vamo “fazê” um teste pra ver se estou certo ou errado… Deixa eu jogar um pouquinho nele.
Foi o sacristão trazer a cabaça para o padre fazer o sinal da cruz e sapecar alguns pingos da água no rosto do infeliz (no exato momento em que ele fazia caretas pro vigário). Bastou a água benta cair para as labaredas subirem, enquanto o negão berrava de dor com o rosto fumegando mais que fogo em munturo molhado. Berrando feito um bode, Braúna saltou desta cama, pegou um pinico e “moeu” o vigário de pancadas. Sai daqui “fí” de uma jumenta, quero saber de “pádi” aqui não! Fora, fora, fora!…
O desespero de Braúna era visível, enquanto o padre fugia dos golpes, ele butucava os “zóios”, espumava os cantos da boca, impelia a língua pra fora e gritando um monte de impropérios, escorraçou o vigário quarto afora na base da pinicada. – Suma daqui infeliz, vá rezar na casa da peste, preciso de vigário nenhum aqui não… fora, fora, fora!…
Entendendo o recado e completamente desorientado, o vigário montou neste burro, meteu as esporas no vazio do animal e capou o gato, se esquecendo completamente do pobre sacristão que teve que correr quase uma légua pra alcançá-lo.
Passados 40 dias, em uma noite de chuvas e trovões, o ovo chocou e nasceu um diabinho deste tamanhinho. Feinho de fazer dó! Dois chifrinhos na cabeça, um par de asinhas amarrotadas, dois pezinhos mutilados, um rabinho espinhado e mais vermelho que albino no sol. O bicho, apesar de ter apenas uns quinze ou vinte centímetros de altura, já tinha uma corcunda a lhe curvar as costas e já andava mancando, apoiado em um graveto de quiabento.
– Ôxe, que coisa mais feia! Quem é você, coisa ruim? Vá ser feio assim lá nos confins dos “zinfernos”! Feio aqui basta eu, oxêm!
Assim que Braúna teve um contato mais próximo com o cramunhãozinho, passou a ficar a noite inteirinha admirando aquela coisa “zoiúda” de dedos enrugados, cujas unhas pareciam navalhas afiadíssimas… com dois dentões retorcidos do lado de fora da boca.
– Meu Deus, que coisa mais ridícula me deram pra criar! – Após dois dias olhando aquele pedaço de gente entrelaçado com bicho, Braúna começou a achar que aquilo não lhe iria servir pra nada. Desconfiado, deu uma bistunta e garguelou o pobre diabo, o empurrando à força dentro de uma garrafa cheia até os beiços de álcool canforado, vedando com uma rolha.
Mesmo debilitado, Braúna, arrependido com o pacto, se invocou de afogar o diabinho, sacudindo violentamente o conteúdo da garrafa, porém, quando estava próximo de cometer a insanidade, viu uma lágrima de sangue rolar dos “zoiões” pidões do infeliz, o que o fez desistir da ideia.
– Ô gente, ele é apenas uma bebezinho. Não posso matar o bichinho desta maneira, acho que vou criá-lo, deve ter alguma serventia.
O diabinho da garrafa ficou famoso em todo o sertão por trazer riqueza para quem o possuía. Claro que o preço da contrapartida era altíssimo, em troca dos bens materiais adquiridos em vida, o infeliz tinha que dar a alma em troca através de um contrato devidamente assinado com sangue. Sem saber ainda como conduzir aquela situação, Braúna criava o bicho dentro da garrafa, escondido debaixo da sua cama de varas.
Uma noite acordou com o bicho lambendo as suas partes íntimas e roncando feito um leitão. Injuriado, o negão pegou o bicho pelos chifres, jogou violentamente contra a parede e lhe aplicou uma dúzia de bofetões.
– O que tu tá querendo? Viraste mofino, foi? Não gosto de baitola não, que droga de diabo fresco é você? Se voltar a pegar nas minhas partes eu lhe afogo no alcanfor, seu boiola!
Em menos de uma semana, lá estava Braúna concretizando o pacto. Ao invés de riqueza, o negro (malandro como era) pediu sabedoria, sabia que com a esperteza adquirida ele jamais precisaria de dinheiro (e no seu íntimo, nutria a esperança de no fim da vida, passar a perna no diabinho). Assim, enquanto criava o pé redondo dentro da garrafa, ia articulando um jeito de descumprir o combinado. A partir deste dia o negão passou a tocar terror na região. Roubava tudo quanto há dos confinantes (galinha, porco, bode, carneiro), arranjava encrencas com uma renca de valentes e sempre se dava bem, matou umas duas ou três suçuaranas de facão, garguelou uma sucuri e ainda pegou com a mão as seis balas disparadas à queima roupa pelo Coronel Onofre.
O contagiante e alegre João Braúna passou a ser temido por todos. Muita gente o via se invultar diante do perigo, virando toco, lajedo, árvores, cobra e até urubu. Morreu de morte morrida com quase noventa anos. Reza a lenda que enquanto o corpo era velado, podia se ver o diabinho, deste tamanhinho sapateando feliz em cima do seu caixão.
Dizem que após um pipoco, o caixão virou uma bola de fogo com o diabinho dançando dentro enquanto o corpo voava levado pela ventania. Se é verdade, eu não sei. Só sei que improvisaram um caixão novinho em folha para descer à sepultura apenas com a mortalha do negão.
Vira se mexe, os vizinhos dizem ouvir na calada da noite a voz de tenor de João Braúna ecoando nas terras que ele morava. Olhos mais astutos dizem até já terem visto ele e o diabinho da garrafa brincando de roda no chão pisado do terreiro.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Março de 2025.
Minguante de Outono.