Meio-dia, um calorzão lascado, a curriola chega no antigo boteco de Cheiro e após uma exaustiva negociação consegue chegar à um acordo para comer uma porção de sarapatel. Cada um com os seus cobres contadinhos. Enquanto Cheiro esquenta a iguaria, eles caem na bestagem de pedir uma brahma e quando o dono do bar abre a cerveja geladinha (branca de neve), quem chega e já vai se sentando na mesa? Ele, Jerisvaldo. – Traz um copo aí! – Já vai gritando cheio de marra!
Qual o morador de Cândido Sales que não conhece Jerim? Para as pessoas de outras paragens, direi que Jero é um neguinho cabeça seca, fazedor de amizades, conversadorzinho feito o diabo, um mão de figa que não dá água nem à pinto. Há alguns anos, Jero foi acometido de um AVC violento, quase que perdeu a vida. Hoje ele tem procurado se restabelecer. Este caboclo, aqui neste torrão, sempre foi amado e odiado ao mesmo tempo. A doença fez que os desafetos amenizassem as críticas e torcessem para a sua recuperação. Jero sempre foi conhecido por ser veloz feito um raio. Andava o dia inteirizim pelas ruas de Cândido Sales em um ritmo alucinante. “Irmão” (como ele gostava de chamar as pessoas), trabalhou a vida inteira de office boy e andava mais que notícia ruim. A sua velocidade o transformou em verbete… “Ligeirim”. Vive, nos dias de hoje procurando se recuperar. O baque foi pesado!
Voltando ao início, assim que Jero se sentou na mesa a galera coçou a cabeça. Não era atoa a fama de serrote que o caboclinho tinha, além de comer e beber em uma ligeireza lascada, saía às ruas traçando o que encontrasse pela frente. De graça, comia até cascavel. Na hora de pagar a conta, saia de fininho e sempre sobrava pra alguém. Neste dia um dos ocupantes da mesa preparou uma armadilha pra ele:
– Jero, toma aqui um engov.
– Precisa não, irmão. Estou bem! – Respondeu Jerim sempre entornando o copo. Nesta altura todos os fregueses do boteco já sabiam que preparam pra ele uma cilada com lacto-purga. Como Jero sempre saía sem pagar, alguns fregueses trouxeram um laxante para forçá-lo a sair mais cedo. Amassaram três comprimidos, distraíram Jerim e misturaram o pó ao seu copo. Jero virou de vez o copo de brahma e ficaram só esperando o efeito. Desce uma gelada aqui, outra ali e ele entornando todas. Passa quinze minutos, nada. Meia hora, nada. E quando a turma já estava quase desistindo, a barriga de Jero resolveu dar um pipoco aterrador.
– Ôxe, que diabo foi isso? – Perguntou alguém morto de saber.
– É a barriga de Jero, você está passando bem, irmão?
– Sim. Sim… estou bem, respondeu Jerisvaldo branco igual uma vela. – Vou em casa e já volto! – Falou saindo às pressas, segurando a barriga e soltando flatulências para tudo que era lado. Neste dia, Jero chegou em casa todo cagado e ficou a tarde inteira no banheiro, enfim, a turma se vingou do aproveitador que bebia sem pagar. “Mano Véi” sempre rendeu boas histórias. Quando moqueado tinha histórias surreais. Saia pela noite sem um centavo no bolso, entrando em todos os botecos. Bastava o dono o ver para vir gritando:
– Aqui não, aqui serrote não entra! – Bom… digamos que Jero era assim… meio agarrado. Guardava o seu salário e bebia às custas dos outros. Quando a vontade de beber apertava, ele saía tropicando nas próprias pernas, passando de mesa em mesa pegando à força os copos e virando goela abaixo, se lixava para o que tinha dentro. Se alguém caísse na bobagem de tomar satisfação, o nego virava a porra. Queria brigar. Quando bêbado a voz era mais grossa que zumbido de mangangá. Encarava qualquer um e tome dedadas nas caixas do peito. Ficava em uma valentia disgramada e dizia a frase que deixava o oponente atônito:
– Jerim é mau?!! Diz aí pra eu ouvir… Jerim é mau?!! – Depois de duas ou três dedadas o melhor a se fazer era esquecer completamente a desfeita e cair fora! Jero era porra louca. O pecado da gula parece ter sido feito pra ele. Bebia e comia à exaustão. Dormia bêbado e acordava pra beber. Sim, o velho Jero “cortava uma água lascada”, ficava dois, três dias embriagado e se embriagando.
Quando sóbrio, o caboclo era espetacular, atencioso, gentil, servidor… quando bêbado, se transformava no capeta. Uma vez, pra lá de moqueado, lá estava ele tirando a paz de Zé Preto (Zé era seu predileto. Adorava sacaneá-lo).
– Jero, melhor você sair desta mesa, quem se sentar aí tem que rachar. – Jero, com uma invejável tranquilidade respondia: – E daí? Você sabe se eu não tenho dinheiro? – Perguntava cheio de marra. – Bom, estou lhe avisando. A conta aí é pesada! – Dizia Zé, contrariado. Mesa farta, forrada de cerveja e Jerim junto. Quando se falava na conta, Jero dava um bistunta, corria e se trancava no banheiro. Só saía quando todo mundo pagava. Voltava com a cara mais limpa do mundo e ainda tomava a saideira. Certa feita, lá estava ele na godela quando chega um amigo com um aplicativo no celular e após fotografar “Mano Véi” – outro dos seus apelidos – colocou uns chifres retorcidos sobre a sua cabeça e começou a mostrar pra todo mundo. Diante das risadas, ele ficou desconfiado…
– Deixa eu ver de que vocês estão sorrindo? – Quando tentava ver, o amigo escondia. Lá pras tantas, Jero deu um bote, arrebatou o celular da mão do gozador e após ver a sua foto com chifres, virou a porra. Ameaçou jogar o celular fora e quando foi dominado por três homens, virou pra todo mundo e falou a frase que entrou para os anais históricos da cidade:
– Cornão, você!… Cornão, você!… Cornão, você!… – Não livrou a cara de ninguém. Um dos amigos da mesa se ofendeu, levantou-se e quase foram às vias de fato. Tiveram que dar um banho forçado em Jero para acalmar os ânimos. Mesmo hoje, acometido da doença e em cadeira de rodas se alguém passar perto dele com algum copo ele toma à força e vira goela abaixo. Reza a lenda que ele bebeu sua cota de canjebrina antes da hora, inclusive, o “volume morto”.
É sabido por todos que as coisas que “Mano Jero” mais gosta na vida é cachaça, dinheiro e festas… – não necessariamente nesta ordem. Um pouco antes da retomada da Miconquista, o nego se acidentou feio (ficou n’um desesperado lascado!), cortou a parte de cima do pé ficando um bom tempo sem trabalhar.
A Micareta começaria na sexta-feira e na quinta-feira eis que aparece na empresa o Velho Jero caxingando, ancorando em um cacetinho de madeira. Pulando igual caçote, adentrou a sala do patrão, com uma terrível cara de dor!
– Patrão, pelo amor que o senhor tem pela sua esposa e filhos, eu careço do adiantamento do meu pagamento. Olha só a situação do meu pé! – Retirou um pedaço de molambo que estava amarrado sobre o ferimento e mostrou um talho de todo tamanho, rasgando praticamente toda a parte superior do seu pé direito. Ao ver aquela carne branca estufada, o patrão quase caiu. Aprumou o corpo e continuou ouvindo as reclamações de Jerim.
– Já está até fedendo, patrão. Se o senhor não me adiantar o pagamento como é que eu vou curar esta ferida? Vou perder o pé! – O pagamento só sairia na segunda-feira, porém, diante do exposto, penalizado, o patrão juntou os trocados do caixa, juntou o que tinha nos bolsos, pediu um adjutório do gerente e lhe adiantou o pagamento, Jero ficou tão feliz que faltou beijá-lo.
– Deus lhe favoreça patrão! Deus lhe pague! Eu vou agora mesmo comprar o meu remédio. Deus lhe dê em dobro tudo o que o senhor tem! – Se ajoelhou diante de todos, olhou para o céu, fez o sinal da cruz, voltou a fazer a cara de dor e amparado no seu rústico cacetinho saiu caxingando empresa afora.
No dia seguinte, lá foi o patrão assistir à Micareta. Parou, com os amigos e familiares na Bartolomeu e ficou só observando o evento…
Passa um trio aqui, outro ali, “Chicleteiros” gritando, Armandinho, Dodô & Osmar agitando, Olodum batucando, Daniela “sensualizando” e eis que após um hiato de mais ou menos meia hora, surge lá no fim da avenida uma luz imensa. Lá vem um carro elétrico tocando reggae. O som veio surgindo lentamente…
O chefe, roqueiro que era, ficou todo animadão. Aquela “sonzeira toda”, todo mundo dançando e eis que na frente da carreta surge um neguinho rastafári requebrando mais que o capeta. E tome reggae… Jimmy Cliff, Bob Marley, Cidade Negra, Skank, Gilberto Gil, Peter Tosh, Edson Gomes… e tome música, o caminhão elétrico vindo bem devagar, a iluminação esfuziante, as cores da Jamaica se destacando, aquele fuzuê, aquela animação, aquele fumacê danado em volta do trio e bem na frente, chamando a atenção de todos, um bailarino alucinado…
Diante da cena, o patrão esqueceu o trio e focou sua atenção no dançarino, ô neguinho lascado pra dançar reggae! Jogava as madeixas para um lado, jogava para o outro, inventava passos, dava rodopios, plantava bananeira, jogava capoeira, roubava o espetáculo… Nesta altura o patrão chamou a família e mostrou o rastafári eletrizante que roubava a cena. Aquele dançarino só podia ser da terra de Bob Marley, Peter Tosh e Jimmy Cliff. Vai dançar assim lá na Quixabeira!
E o neguinho tome dança! Rebola aqui, requebra ali e o trio veio se aproximando, se aproximando e o neguinho foi se parecendo com Jerim, foi se parecendo com Jerim e o trio foi ficando mais perto e o chefe foi ficando agoniado, e o desespero foi subindo, e o trio elétrico foi se aproximando, e o patrão com falta de ar, o trio se aproximando… afinal de contas alguém com o pé naquele estado jamais estariam fazendo aquelas mungangas. Mas o diabo era que parecia demais, mesmo com as madeixas compridas e o bonezinho colorido rodopiando na cabeça, o dançarino era Jerim cagado e cuspido!
E lá vinha o trio elétrico adentrando a Bartolomeu. O vocalista todo animado, o baixista ritmando, o guitarrista fazendo solos apoteóticos e o povo pulando mais que caçotes. E lá vem o trio e lá vem o neguinho… Quando faltavam uns cem metros para o trio chegar, o patrão saiu do prumo e já acometido de taquicardia deu uma bistunta e correu para cima do neguinho! Não se aguentava mais de curiosidade… O som do trio e a concentração musical dos dançarinos evitaram que ele percebesse a aproximação, ao chegar bem perto, o patrão tocou-lhe o ombro, o dançarino se virou e o chefe quase cai…
– Nego Jero, que porra é essa, é você? Meu Deus! Não acredito no que estou vendo! Você não estava com o pé todo fodido, rapaz? Que diabo é isso?
Ao olhar para a cara do patrão, o negro que é afrodescendente, ficou branco igual talco. Diante do imediatismo da surpresa, o infeliz ficou imóvel por alguns segundos para em seguida soltar um grito estridente, dar um rodopio de 360 graus e se estatelar no chão, segurando o pé machucado e abrindo um berreiro:
– Aí, meu pé! Ai meu pé! Ai, tá doendo demais! Me acode, me acode, meu pé está me matando… socorro, socorro… Me leva pro hospital!…
Levantou-se com a cara mais limpa do mundo e diante da perplexidade do patrão, saiu caxingando…, seguindo atrás do Trio Elétrico…
Moral da História: Atrás do Trio elétrico… – Diria Caetano.
Fim
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Fevereiro 2025.
Minguante de Verão