Oficialmente o Carnaporto começou em fevereiro de 1990 no Governo Jaimilton Acioly, porém, muito antes dessa oficialização, Almir (Mimi Gatão) reuniu os amigos (leia-se Badim, Carlinhos, Milzinho, Piu, Toninho, Baé, Gaguinho, João da Caçamba, Ney… entre outros) em pleno carnaval (onde não acontecia absolutamente nada por aqui) e após disputar uma partida de futsal entre homens trajando saias e vestidos – todos moqueados -, na quadra esburacada do colégio Roberval Santos, resolveram promover uma batucada no vilarejo do Porto de Santa Cruz. Assim, Gatão – que tinha moral com o intendente da época – emprestou meia dúzia de instrumentos do Colégio Orlando Spínola (caixas, bumbos, taróis, tambores, cornetas…), e após uma vaquinha, compraram tudo quanto há… carne, fígado, cachaça, conhaque, vermute, vinho, martini, whisky… apearam na carroceria de um baqueleleixo e caparam o gato pro Porto.
Foram diretamente para os lajedos na beira do rio Pardo onde improvisaram uma churrasqueira de pedras, e entre caipirinhas, batidas e muita cachaça, assaram alguns quilos de carne e chumbados feitos gambás deram de batucar no centro do vilarejo, bem em frente à igreja, diante dos olhos esbugalhados dos ribeirinhos. Imagine aquela renca de barbados, vestidos de tudo quanto há (cuecas samba-canção, minissaias, maxissaias, vestidos e bustiês) dançando em fila indiana em torno da cruz, e entre os cantos embriagados de “Índio Quer Apito e Olha a Cabeleira do Zezé” desceram (literalmente) o pau nos instrumentos, em um batuque desafinado e ensurdecedor. Estava extraoficialmente criado o Carnaporto no vilarejo do Porto.
Como bêbado não tem freio, lá para as tantas, Baé, cheio de desassossego, deu uma bistunta e arrancou à força a cueca samba-canção de João da Caçamba o deixando do jeito que veio ao mundo. Diante da zoação da galera, João passou uma descompostura tão ferrenha no infeliz, que sem saber o que fazer, correu para o primeiro boteco que encontrou, sentou-se no balcão e abriu o bico chorando. Foi a tarde inteirinha soluçando e limpando as lágrimas, enquanto solvia sozinho um litro de canjebrina, feita ali mesmo nos fundos do botequim de João Saracura. Botava o litro de pinga debaixo do suvaco e chorava que era uma beleza.
Em 1990, lá vem Jaimilton como Prefeito “inventando de inventar” o Carnaporto. Já existia o Espigão e a Banda da moda era a “Outra Banda da Terra”. A Brilho Solar que na época tinha uma rixa com a administração, foi excluída. Os opositores criaram meio que a toque de caixa um novo conjunto musical, tendo Adelino na Guitarra, Salvador no Baixo, Ferreirinha na Bateria e contratado às pressas, diretamente do Espírito Santo, o vocalista “Pombo”.
Pombo – que hoje é cantor evangélico – na época era um “capeta”! Magérrimo, esquálido, rodopiante, meio saltitante (dava até umas aparências do cantor Luiz Caldas) e quem o via de longe, muitas vezes o confundia com um índio…, porém, o caboclo cantava igual um mangangá. Requebrava tanto os quadris que pareciam serem de molas, gostava de dar uns “tapinhas” e quando ficava “doidão” subia em cima das caixas de som (que balançava mais que balanço de crianças) e mandava ver… O caboclo levava a galera à loucura e por tabela, o mandatário Jaimilton Acioly. O intendente adorava as loucuras de Pombo.
Ferreirinha, Salvador (ambos falecidos) e Adelino já tocavam juntos há muito tempo, assim, bastaram alguns ensaios para ficarem em ponto de bala, Pombo, extremamente profissional, bastou um dia para ficar completamente entrosado com a Outra Banda da Terra. Em 1990, os festejos “momescos” se davam apenas no Centro recreativo Espigão, recém-inaugurado. Alas que após os festejos do sábado de carnaval, Jaimilton não se empolgou e resolveu realizar o sonho do povo? Sim. Cismou de fazer o carnaval no vilarejo do Porto. Olha só os problemas: zero infraestrutura, não existia palco, transporte, bares e nem energia elétrica.
– Brother, a partir de amanhã à tarde, vamos fazer o carnaval no Porto. Não quero saber de desculpas, é pra fazer e pronto! – Não precisa nem dizer que foi uma correria só. Consultaram os músicos que ameaçaram fazer “doce”, mas… toparam na hora. Alguém sugeriu que as caixas ficariam em cima do próprio caminhão que serviria de palco e “Séba” (antigo morador daqui) que tomava uma cana lascada e nas horas vagas consertava televisão, falou com a cara mais limpa do mundo:
– Pode deixar, que a luz quem dá sou eu! – A turma desconfiou (afinal, o cara era adversário), porém, não faltou quem argumentasse a favor. No dia marcado logo cedinho, Séba – que tinha seu próprio veículo – jogou um pequeno motorzinho (destes que eram muito usados em casas de farinha) na caçamba do seu carro e “picou a mula”. As caixas de som foram amarradas em cima da carroceira do caminhão e após os calundus habituais, lá foram os músicos fazer história.
Mal chegaram e deram com a praça entupida de gente. Tão lotada que mal deu para estacionar o palco. O representante da Administração desceu do carro e procurou Séba que se encontrava em um cantinho de uma velha casa em ruínas já com os fios todos esticados esperando para fazer a ligação. Ligeiro como um felino, o “consertador de televisão” conectou ligeirinho a fiação e após quase uma dúzia de tentativas não é que conseguiu ligar o velho motor? Não só ligou como botou para funcionar toda a “aparelhagem” improvisada.
Logo, lá estava Adelino improvisando seus acordes, Salvador pulsando o seu baixo, Ferreirinha espancando literalmente os couros da sua velha batera (levou até Jerim para tocar agogô) e Pombo, ensandecido, desfilando o seu vasto e eclético repertório, saltando como um maluco em cima da carroceria. Pulava de uma árvore na outra, em cima das caixas de som, na velha cabine do caminhão, ficava de ponta cabeça, cantava deitado, dava rodopios, jogava capoeira e não satisfeito ainda descia para dançar no meio do povo, junto com a galera enlouquecida com os axés, afoxés e sambas reggaes da Bahia. O artista tirou completamente o povo da zona de conforto. Quando aplaudido, dançava em cima das caixas de som amarradas em cima do caminhão, balança aqui, balança ali, ameaçava cair e Pombo com uma invejável habilidade saltando de uma pra outra, de outra pras grades da carroceira, das grades pro chão e o poeirão levantando e o povo dançando e tome axé, e tome afoxé e tome marchinhas… e tome carnaval!
– Eu falei Faraó… ó… ó… ó…. – Ninguém conseguia ficar parado. Era todo mundo dançando. – Eu sou negão, meu coração é a liberdade…. – Repentinamente o vilarejo virou uma praia com lindas garotas usando minúsculas tangas, dançando freneticamente e a poeira subindo e o motorzinho de Séba ameaçando bater biela.
Festa vai e festa vem e o povo em êxtase… Nenhum Prefeito foi tão cumprimentado como Jaimilton naquele dia. Todo mundo o agarrava, abraçava, beijava, alguns faziam questão que ele bebesse em seus próprios copos. Em lugares pequenos é assim. Demonstra-se respeito bebendo no copo do outro.
– Toma um gole aí, Jaimilton! Você é um prefeito fodido… que carnaval lascado você tá fazendo, velho? Viva Jaimilton, viva Nova Conquista, agora temos Prefeito! – Gritavam os correligionários. Mas, como bem diz o ditado, nada vem de graça, nem o pão e nem a cachaça. Ao ver o sucesso da festa, Séba (que estava longe de ser besta) sentiu que chegara o momento de exigir sua grana adiantado. Sem alternativa, o prefeito firmou um contrato ali mesmo em letra de forma, prometendo pagar a referida quantia depois dos festejos. Mesmo com o contrato manuscrito em uma velha folha de papel, arranjado às pressas, Séba exigiu um fio do bigode do Prefeito. Era a sua garantia. Mostrava pra todo mundo.
Depois de duas, três horas de música, o povo enlouquecido se requebrando, as meninas rebolando, a cachaça correndo solta, eis que o baixista Salvador desce ofegante do caminhão e chama o Secretário responsável pelo evento em um cantinho reservado:
– Velho, a aparelhagem está esquentando e se a gente não parar agora, vai queimar tudo! – Notícia bomba! Imediatamente chamaram o Prefeito que foi oficialmente comunicado. Contrariado, viu-se obrigado a autorizar o encerramento da festa. Naquele momento, tomando sua caipirinha no meio do povo e gozando das benesses do festejo, estava o recém-eleito vereador Osvaldinho (já falecido).
Ao ouvir a prosa, olhou para o Secretário meio de soslaio e pediu educadamente para subir ao palco e informar aos foliões o sucedido.
– Deixa comigo que eu resolvo o problema. Quando esse povo ouvir que vai parar a festa vão ficar putos. É necessária muita habilidade para que o nosso povo entenda! Deixa comigo que eu vou explicar direitinho e tudo vai ficar bem!
Político tem um poder de discernimento que vou te contar!… Após convencer os interessados, lá foi Osvaldinho subindo no carro, tomando o microfone da boca de Pombo e anunciando o problema (pelo menos foi isso que a cúpula imaginou): – Alô, alô minha gente, o carnaval está gostoso ou não está?
– Táááááááááá Simmmmmmm! – Responderam em uníssono os foliões.
– Quem gostou levanta a mão!!! (Estão pensando que esta frase é nova?) – Centenas de pessoas levantaram as mãos e Osvaldinho do alto da demagogia que caracteriza os políticos, bradou:
– Meu povo, eu descobri que os secretários estão querendo acabar com a festa agora! Querem tirar a alegria de vocês! Mas não vão não, sabe por quê? – Perguntou enfezado – Porque Osvaldinho está aqui e não vai deixar isto acontecer. Vai tocar nesta porra até anoitecer! Quem paga isto aqui são vocês! Vai tocar sim!
Não precisa nem dizer que o povo ficou ensandecido. Séba que tinha um restinho de gasolina encalhado no fundo de um velho balde teve que reabastecer o motorzinho às pressas e Osvaldinho já desceu do caminhão diretamente para os braços do povo. Desliga o som que eu quero ver? De nada adiantou os velhos aparelhos esquentarem, só parou quando o sol entrou. O vereador teve que correr pra não apanhar dos Secretários. A partir deste dia, sempre que Osvaldinho dava de cara com algum integrante daquela administração, dava no pé, fugia igual o diabo da cruz!
O primeiro contato real da Administração com um político profissional, deixou todos em estado de choque. Depois descobriram por motivos óbvios, que quase todos agem assim, porém, nem tudo ficou perdido. Entre “mortos e feridos” nasceu o famoso carnaval do Porto de Santa Cruz que continua ainda hoje fazendo sucesso.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Fevereiro de 2025.
Minguante de Verão