O Papai Noel originou-se de um bispo cristão que morou na Ásia Menor entre os séculos III e IV d.C., chamado de São Nicolau de Mira (ou Nicolau Taumaturgo) e habitava uma região da Turquia, Ficou muito conhecido por sua generosidade. De uma família grega cristã muito rica, teria ficado órfão muito cedo e decidiu usar sua fortuna para ajudar os mais necessitados. A imagem moderna do Papai Noel, após ser trazida por imigrantes holandeses no século XVIII, foi popularizada mundialmente pelos Estados Unidos. É bom salientarmos que o velhinho gordinho e bonachão, verdadeiramente, nunca existiu.
Pois é, já é quase natal. Quando chega esta época me recordo do primeiro Papai Noel que deu por este torrão no ano da graça de 1982. “Candin” era uma espécie de “cidade fantasma”, só sabíamos da existência do natal porque ouvíamos as estações de rádios AM – a televisão em rede era precária, assistíamos mais chuviscos que imagens. Exatamente neste período, um dos nossos jovens mais dinâmicos retornou da pauliceia. Jaimilton Acioly voltou cheio de ideias, todo energizado, querendo fazer Cândido Sales ser minimamente reconhecida. Vivíamos estagnados, governados por “coronéis acomodados”, trazendo os moradores no cabresto sem direito algum. O jovem cabeludo (e bigodudo) disponibilizou o que aprendera na megalópole para forçar uma mudança de poder. A primeira ideia foi distribuir presentes, usando a figura rechonchuda de Papai Noel. Para se ter uma ideia, se o natal já era distante para nós que, curiosos, futucávamos várias ferramentas em busca de informação, imagine para a grande maioria, ali, debaixo do chicote dos poderosos? Após algumas reuniões com a juventude, o bigodudo saiu batendo de porta em porta, coletando brinquedos para as crianças carentes. Uma bola de borracha aqui, algumas bolinhas de gude ali, um carrinho de matéria plástica ou uma boneca de pano… tudo servia. Véspera de Natal, Jaimilton encomendou uma vistosa roupa de seda vermelha sustentada por um par de suspensórios reforçados, um gorrinho vermelho e branco, uma incômoda e espinhenta barba postiça, um travesseiro como barriga falsa e um velho jipe – caindo aos pedaços. Após conseguir o veículo, difícil foi achar um motorista. Quem tinha minimamente um pouco de juízo recusava veementemente a proposta. Ninguém queria dirigir aquilo. Depois de muito procurar, convenceram Marlowe (morreu jovem, eletrocutado.) filho de seu Miguel do Posto Texaco (que nas horas vagas era juiz de paz), a ser o chofer do baqueleleixo, que também era o substituto oficial do trenó do Papai Noel Cândido-Salense.
– Brother… Você será o assessor de Papai Noel, não é uma honra?
– Cuma? Papai Noel? Tenho que fazer o que? – Indagou um atordoado Marlowe. Após algumas explicações, o jovem (baixinho e gordinho) ficou sabendo que o Papai Noel apareceria na porta da Igreja logo depois da missa, em cima do velho Jipe sem capota! A coisa seria rápida… Fariam algumas mungangas, distribuiriam os brinquedos arrecadados e sairiam literalmente nos braços do povo. Após relutar um pouco, Marlowe confirmou sua participação. Após todo o planejamento, Jaimilton se pôs a divulgar o evento na Voz Independente, única emissora existente na cidade.
– Papai Noel está vindo pra Cândido Sales, minha gente. Neste natal, logo após a missa, leve a sua criança para receber presentes. Tem presente pra todo mundo! É no dia de Natal! Vá à praça da Igreja e fique cara a cara com Papai Noel, pela primeira vez em nossa cidade. – Que Cândido Sales é uma cidade carente, todo mundo sabe. Que brinquedos eram privilégios de uma minoria, também era sabido, assim, quem não gostaria de ganhar um presente (por menor que fosse) das mãos de Papai Noel? A meninada ficou em alvoroço.
Pois foi. Uma semana inteira com as equipes arrecadando tudo o que era possível. O saldo foi espetacular! Foram tantos brinquedos que ao jogarem em cima do jipe, o bicho arriou os quartos. Chegado o grande dia, Jaimilton vestiu a roupa do Papai Noel, ajeitou a barriga de pano (a calça ficou meio folgada), a barba espinhando feito o diabo, um calor desgraçado, o jipe entupido até os beiços de brinquedos e Marlowe todo nervoso, arranhando as marchas. Botava a primeira, entrava a segunda, tentava a ré o bicho estancava, empurrava o pé no acelerador e quem disse que o diabo do jipe saía do lugar? Além de não sair ainda soltava uma quantidade medonha de fumaça preta. Estrategicamente, o QG da distribuição fora montado na porta da Igreja, visando, inclusive, economizar no combustível já que o danado bebia feito um condenado. Deu o horário da distribuição e quem disse que Marlowe conseguia mover o baqueleleixo? Foram quase dez minutos encavalando as marchas, assim que ele acertou uma primeira o jipe saiu pulando igual um caçote. Até fazer o veículo andar demorou-se mais de um hora. Nesta altura a missa já tinha acabado e a praça fervilhava, cheia até os beiços, com as pessoas achando que aquilo fora um trote. Era gente chorando, outros xingando, crianças dando calundus, outras cambalhotas e um barulhão infernal entrelaçado ao insuportável calor! No auge da ansiedade, vê-se ao longe uma nuvem negra acompanhada de um barulho engasgado de um motor. Alguns minutos depois deu pra ver que lá vinha Papai Noel e sua comitiva – no caso, o baixinho Marlowe. A praça faltou vir à abaixo. Só se ouviu o grito: – Êeeeeeeeeeee! É Papai Noel! Ele chegou! Viva Papai Noel! Viva os brinquedos! – E mesmo com o jipe capengando, lá vem Papai Noel se aproximando… à medida que se aproximava ninguém entendia o que ele fazia em cima daquele baqueleleixo caindo aos pedaços. Segurava um saco nas costas com uma mão e com a outra não sabia se acenava ou coçava a barba postiça. Antes mesmo de chegar ao local indicado o jipe deu uma bistunta e estancou, subiu aquele fumacê preto e quem disse que a molecada quis esperar? Afoitos, desceram à força dos colos dos pais e desembestaram em direção ao jipe, cercando papai Noel:
– Me dá o meu, me dá aqui, eu quero, quero o meu… – Nunca se viu tanta bagunça de uma só vez. Os maiores atropelando os menores, os menores passando por baixo dos maiores, os mais ágeis escalando o jipe e Marlowe atônito com seu gorrinho na cabeça tentando ligar o baqueleleixo… e quem disse que ligava? Um Papai Noel prevenido vale por dois, diante do aperto, o bom velhinho muniu-se do velho megafone e bradou: – Alô, alô garotada! Quem quer brinquedo? – Eeeeeuuuuuuuu! – Bradaram centenas de vozes em uníssono. – Aqui quem fala é Papai Noel (como se eles não soubessem). Vamos nos organizar para receber os presentes, todo mundo em fila, tem presente pra todo mundo. Quem não ficar comportadinho não vai receber. Todo mundo em fila. Papai Noel não gosta de criança mal-educada!
Era realmente muitos brinquedos, mas, a conta jamais fecharia. Por mais brinquedos que tivessem ali, o número de crianças era muito maior. Ninguém sabia que em Cândido Sales existiam tantas crianças. A praça lotada e chegando meninos de todos os lados. Se não bastasse, ainda tinha mães grávidas que entravam na fila querendo brinquedos para quando o neném nascesse. Outros querendo mais de um brinquedo, alguns entravam, ganhavam, escondiam e voltavam pra fila.
E Papai Noel suando em bicas, entregando brinquedos, segurando a calça e coçando a barba. Beijava uma criança aqui, tirava um retrato com outra (época dos monóculos que eram reveladas em Vitória da Conquista) e todo aquele sufoco. À medida que os brinquedos eram distribuídos a quantidade de crianças parecia crescer. Depois de duas horas ininterruptas distribuindo brinquedos, Marlowe, desesperado dá um toque para Papai Noel: – Não vai dar não! Está acabando!
– O que? – Perguntou Papai Noel, preocupadíssimo! – Está acabando e olha só o tanto de gente! – Papai Noel já não sabia o que era pior: o cansaço, a coceira da barba, a calça caindo, o suor descendo pelo rego ou os gritos acirrados das crianças, que longe de serem bobas, temendo o pior, farinha pouca, meu pirão primeiro…
– O meu, dá logo o meu, dá aqui o meu! – Gritavam.– Merda! – Exclamou Papai Noel. – E agora? – Só tem um jeito. Vamo capar o gato! – Gritou Marlowe correndo para a direção, ligando e acelerando o veículo. Assim que a fumaça preta tomou conta da praça, ele sugeriu: – Melhor avisar que acabou! – O problema, que atentos, a molecada flagrou a situação antes do aviso e quando percebeu que eles iriam fugir despejou uma chuva de pedras, buchas de laranjas, terra, água, cusparadas, tapas e garrafadas sobre a dupla. Fugindo dos objetos atirados, Papai Noel se viu agarrado por centenas de mãos. Puxavam a barba aqui, o gorro ali, os suspensórios acolá… Por muito pouco não levaram a sua calça. Ao ver o jipe se deslocar igual um caçote, um moleque deu um salto cinematográfico caindo de pé em cima do capô. Desesperado, Marlowe deu uma bela de uma freada e o moleque voou se estatelando no chão. Mal piscaram e mais de 20 moleques já estavam em cima saqueando o que restaram dos presentes. O mais agitado teve que ser empurrado pra fora do jipe pelo próprio Papai Noel. Caiu, rolou pelo chão e voltou para o jipe de forma espetacular. Subiu, se agarrou com tanta força à barba postiça de São Nicolau que para retirá-lo foi um suplício. – Vamos, porra, acelera esta merda, caralho, acelere, corra! Vão nos linchar! – Gritou Papai Noel no desespero. E foi menino pulando de cima, de baixo, de lado, uma gritaria lascada, um desespero danado, e por mais que a dupla empurrasse, a molecada parecia se multiplicar. Subiam, quando empurrados, voltavam com tudo… Sentindo que estava enxugando gelo, Marlowe se lembrou do chicote que trouxera, e, completamente descontrolado, desceu a ripa na meninada. “Chilap, chilap, chilap” … Tome chicotada nas costas, nos braços, nas pernas… e a molecada nem aí. Quanto mais Marlowe batia, mais os moleques subiam e logo o que ainda restavam de brinquedos foi completamente pulverizado. Para o azar da dupla, um molequinho cabeça seca, mexeu nos sacos e ao vê-los vazios ficou irritado, tomou o megafone das mãos de papai Noel e abriu o verbo: – Aqui não tem mais não. Ó qui, ó… acabou tudo. Que Papai Noel fajuto é esse? Nem brinquedo tem? – Tudo isso acontecendo e o jipão andando em círculos levantando um poeirão lascado, cobrindo todo mundo, – Este fila da puta enganou todo mundo, vamo quebrar o jipe! – Sugeriu um dos pais! – Pega eles! – Gritaram em uníssono! Jaimilton e Marlowe, encurralados, viram a molecada correrem para o jipe. O desespero fez que engatassem uma primeira marcha e desembestassem até as pilhas de madeiras, onde conseguiram se esconder. Mortos de medo um olhou para o outro, e, calados, limparam o suor dos rostos. Encurralados, ficaram esperando o cair da noite para fugirem. Enquanto recuperavam as forças, a praça fervilhava com aquele monte de revoltados xingando tudo que eram impropérios. Crianças chorando, pais descontentes e mães inconsoláveis. – Papai Noel fila da puta! Vamo cumê seu figo? – Gritou um nordestino. – Vamos achá-los e quebrar o jipe véi! – Sugeriu um rapazola. – Cada um pega uma pedra, vamos atrás deles. – Foram até uma pilha de pedras, armaram-se de lajotas e saíram em busca de São Nicolau. Procura aqui, revista ali, olha nos quintais e nada, quando estavam quase desistindo, um dos moleques não resolveu dar uma “espiadela” na rua de baixo e deu de frente com o jipe? Pois foi. – Ele tá aqui! – Gritou apontando a direção! Pareceu até um estouro de boiada! Aquela renca de moleques atirando tudo quanto há no jipe… – Pega, mata, esfola! – E lá foram mais de duzentos meninos correndo atrás do Papai Noel que por sorte, desembestou ladeira abaixo. Só conseguiu se safar quando uma alma piedosa abriu uma garagem e trancou a porta. Depois de horas encurralados, a dupla saíu pelos fundos, deixando os moleques esmurrando a porta da frente à noite inteirinha, vivendo a ilusão de receber os presentes que jamais chegariam a eles.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta.
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Dezembro, Natal de 2024.
Crescente de Primavera.