Rapaz, descobri uma coisa. Estou ficando velho, o mundo está ficando velho, meus amigos estão ficando velhos e meus inimigos também. Imagino que meu pensamento ainda esteja com seus 20 e poucos anos, o corpo nem tanto. Cheguei à conclusão que ser velho não é pra qualquer um, não. Independente do que disseram os Titãs, há muito que eu não caibo mais nas roupas que eu cabia, só percebi que estou ficando velho quando olhei no espelho e não mais me reconheci. Houve um tempo (nem tão distante assim) que meus cabelos eram pretos, não tínhamos tantas lembranças assim e nem tantas amnésias. Você começa a desconfiar que está ficando velho quando chega em um lugar e os mais novos começam a abdicar dos seus lugares em prol de você… em ônibus, em filas, diante do caixa do mercado e até nas filas dos bancos. Há cerca de uns dois anos dei um pulinho na Pauliceia Desvairada e fiquei extremamente desconfiado quando entrava em um coletivo e os cobradores mandavam eu passar pelas roletas sem pagar, o pior era quando eu entrava e sem ter lugar para me sentar, via aquela renca de jovens me cederem seus assentos. Dia destes lá na “confraria” tocou uma música, que outrora nos fazia dançar no meio da rua. Bastava tocar pra todo mundo se requebrar. Ao ver a música tocando e todo mundo sentadinhos, mexendo no máximo o dedão do pé, caí na besteira de perguntar o porquê de não mais fazermos o que fazíamos antes? – Rapaz… – disse um. – naquele tempo, éramos jovens. Hoje em dia é ridículo. Você já parou para ver no Tik Tok a quantidade de idosos sendo ridicularizados? – Parei para pensar no assunto. Realmente. Não existe nada mais feio que velho metido à garotinho. Principalmente se remexendo, todo elétrico. Na “confraria” a única exceção é Ismayk que é jovem, mas tem a cabeça de velho. Senão, como explicar um garoto no meio de uma renca de velhinhos? O cara tem um inenarrável prazer em passar uma tarde inteirinha junto à Etílica Confraria do 7º Dia ouvindo (e falando) um monte de lorotas. Essa confraria é formada só por velhinhos que se reúnem semanalmente em uma távola (não necessariamente redonda), debaixo de uma das árvores que ornamenta o Bar de Nego. Nerinho, o locutor que voz narra, o professor Vivaldo, Fernando (irmão de Nilson), Kinho Soares, Ostinho e Oriston fazem parte desta junção. Eu nem sei como Ismayk tem saco pra ficar ali ouvindo causos do século passado. O pior que ele ouve tudo atentamente, e conta também um monte de histórias como se fosse um idoso. “isturdia” um destes amigos teve uma crise repentina com caganeira, vômitos e desmaio. A coisa foi tão feia que ele teve que se abster do álcool. Levado às pressas para o hospital, ficou dois dias internado e já saiu tomando uma talagada. Resultado: a caganeira voltou com força total. Sem muitas alternativas teve que dar ouvido ao médico que o chamou em um tête-à-tête e abriu o verbo: – Caboclo, você já fez o seu testamento? Se não fez melhor prepará-lo logo que nesta toada você não vai durar nem seis meses. – Ouviu, tremeu e parou. Um outro amigo meu, Almir (Mimi Gatão), gosta de dizer que quando a água bate na bunda do caboclo não tem coragem que segura a onda. O amigo da caganeira achava bonito ser exagerado. Bebia tudo quanto há em doses generosas, à medida que ia bebendo o cabelo ia ficando pastoso e quando colava na testa era a senha para sabermos que já estava pra lá de moqueado, assim, era só esperar para vê-lo fazer uma bobagem atrás da outra. Dançava, brigava, mexia com as mulheres, se acasalava… não estava nem aí se era homem, mulher ou bicho… O caboclo era tão tarado que traçava o que surgisse pela frente. Dizia não acreditar na Aids, nos vírus e muito menos em Deus. Aprontava tanto que se enroscou com uma garota lésbica, conceberam um filho, depois do garoto crescidinho disputaram a guarda literalmente no tapa, bem no meio da praça destruindo completamente um barraco. Era ele sozinho contra uma legião de “amigas” da sua ex-ficante. Foram horas de embate com as duas partes usando o que podia uns contra os outros, destruindo mesas, cadeiras, copos e garrafas. Se não houvesse a pronta intervenção da gloriosa polícia militar poderia haver até morte. Assim que sentiu a água lhe bater na bunda, este moço parou definitivamente de beber, entrando definitivamente para a lei dos crentes, hoje é um dos principais pregadores da cidade. Diz ele, diz… (Diria Jerim) que assim que completar oitenta anos vai voltar com tudo para as suas jurubebas. Tenho a leve impressão que este não volta nunca mais, bebeu a quota antes do tempo.
Um pouco antes desta parada forçada, cá estava eu no meu ofício quando recebi a ilustre visita deste companheiro. Chegou, contou um monte de lorotas, e quando viu adentrar uma jovem lindíssima, com o corpo mais sinuoso que a estrada de Santos, saiu completamente da zona de conforto e ficou só com os “zoiões butucados”. Enquanto a moça tirava uma xerox, olhei meio que de soslaio para o caboclo e o vi se empetecando todo, penteando os cabeços – quase brancos – com um pente flamengo, olhando em um espelhinho redondo de bolso, daqueles de antigamente, desabotoando uns dois ou três botões da camisa e metendo uma luneta preta na cara. Após se certificar que estava bem arrumado, começou a andar todo diferente, esticou o pescoço, se encostou perto da garota e começou a assoviar uma música de Roberto Carlos, comparando mal, parecia até um peru (ou seria um pavão?). Achei aquilo tão ridículo que fiquei com vergonha por ele. Cheguei à conclusão que o tal do velho não tem mesmo desconfiômetro. Ao perceber o “charme” que o caboclo destilava em sua direção, a moça deu uma gargalhada, e com a cara mais limpa do mundo perguntou: – O senhor está passando bem, tio? – Ele ficou tão desorientado que não acertou nem responder. Murchou igual boneco de posto. Foi aí que percebi que o idoso (de maneira geral) precisa ser urgentemente estudado. Sábado passado, lá estava eu na Confraria ao lado do gato Mel (meu parceiro de música e de petiscos), Ismayk e um outro amigo viúvo – e mulherengo. No auge da conversa chegaram duas garotas (nem tão bonitas assim) e logo, o amigo viúvo que estava sem camisa murchou a barriga, e tal qual um fisiculturista começou a enrijecer o corpo tentando impressionar as garotas. – Olá, olá… estão olhando pra mim, estão vendo? – E tome contorcionismo pra lá, caras e bocas pra cá e quando mais ele se contorcia mais as garotas sorriam. Depois de meia hora de mungangas, as moças deram de sair e, completamente desolado, o caboclo passou a jogar beijinhos em todas as direções. As donzelas até que retribuíram, porém, pensei com os meus botões, ainda bem que estou envelhecendo com dignidade, o tal do velho não cansa de passar vergonha.
Mas, a história de velho mais legal que eu conheço foi a que me foi contada pelo meu grande amigo Zelito. Zelito já joga neste time de veteranos há algum tempo, porém, deve ter a cabeça muito jovem já que ainda joga futebol e adora entrar em piscina dando um duplo twist carpado. Apesar de radicado neste torrão há muito tempo, ele é oriundo do Sul da Bahia. Sua família mora lá até hoje, tanto que, vira e mexe, lá está ele ao lado da sua esposa e filhos visitando seus pais e irmãos. A sua família tem uma confortável casa de praia e periodicamente se reúne à beira mar. O patriarca da família faleceu recentemente, depois de acometido por uma doença degenerativa. Enquanto o velho ainda lutava por sua vida, já completamente desenganado, a família se reuniu para fazer uma despedida digna. Data marcada, todos os filhos presentes vindos das várias partes do Brasil e seu Mathias só na água de coco. Cachaça, cerveja, whisky e tudo quanto há e o pobre do velhinho (que bebera e comera tudo durante toda a sua vida), ali, só na água sem gás e no coco. Diversidade de peixes, carnes, frutos do mar e o velhinho só na sopa de legumes. Apesar da boca seca e morto de vontade (principalmente quando via os filhos rasgando aquelas lagostas e siris enormes), o velho Mathias mantinha a pose, fingia que não estava nem aí pro inebriante cheiro de dendê que perfumava e coloria as moquecas ali servidas. Foram quatro longos dias de muita alegria, cachaça e frutos do mar e o velho se mantendo na dele. Dava vontade, abria um coco verde e solvia a água em uma desconcertante elegância. Alas que no último dia um pescador da região chegou com dois balaios de siris de todo tamanho. Se tinha uma coisa que tirava seu Mathias da sua zona de conforto era o tal do siri mole. Quando aquilo chegou, arrumaram uma lata enorme, encheram de água fervente e enquanto os bichos chiavam dentro, seu Mathias buscava força, sabe Deus onde, para manter o equilíbrio. O cheiro o deixava perturbado, porém, mantinha a calma.
Meio dia, todo aquele banquete, lá veio a esposa trazendo o seu pratinho de sopa de legumes. O velho olhava pros siris, a boca enchia de água, porém, se lembrava nitidamente do que falara o médico: – Olha seu Mathias, frutos do mar, nunca mais. Se comer, vai morrer antes da hora. – Baseado no que ouvira dos médicos, o velho segurou à vontade e mesmo com uma indisfarçável lágrima lhe correndo no rosto, ele manteve a postura e devorou vorazmente o seu pratinho de legumes. Afinal, aquele era o último dia com os filhos, e, em hipótese nenhuma ele queria estragar aquele momento. No dia seguinte os filhos voltariam cada um para a sua vida e ele retornaria para o seu velho e frio leito. Neste dia, alegando estar cansado, seu Mathias resolveu se deitar mais cedo enquanto a família se divertia até tarde comendo e tomando todas.
Três da manhã de uma noite enluarada, o silêncio foi quebrado por um estranho barulho vindo da cozinha. – Pá…Xixi, xi, xi, tá!… Pá… Xixi, xi, xi, tá!… Pá… Xixi, xi, xi, tá!… – Zelito foi o primeiro a se acordar, sacudiu a esposa e perguntou: – Tá ouvindo, Maria? Tá vindo da cozinha. Vamo lá ver o que é… – Saíram ele e a esposa de pijamas e ali mesmo no corredor toparam com aquele monte de filhos, todos sem entender que barulho era aquele que vinha da cozinha. – Meu Deus, o que será isso, algum ladrão, bêbado, doido? – Armado do que tinha à mão desceram todos para a cozinha que se encontrava em plena escuridão, embora o estranho barulho continuasse agora muito mais alto. – Pá…Xixi, xi, xi, tá!… Pá…Xixi, xi, xi, tá!… Pá…Xixi, xi, xi, tá!… – Que diabo é isso? – perguntou Zelito, que, como o mais velho se viu na obrigação de puxar a fila. Assim que apertaram o interruptor deram de cara com uma cena que jamais esperaram ver em vida. Sentado em um canto da cozinha, com a boca toda lambuzada de dendê, cercado por uma enorme bandeja de siri, lá estava o velho Mathias com um martelinho quebrando tudo que eram pernas dos bichos. Quebrava e enfiava goela abaixo. Ao ver a família, o velho estendeu a mão e gritou: – Vou logo avisando: Não entra ninguém! Pá…Xixi, xi, xi, tá!… Pá…Xixi, xi, xi, tá!……
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Poeta e escritor
Cândido Sales, Bahia. Chuvas de Novembro de 2024.
Minguante de Primavera.