O LOBISOMEM DA BR-116.
Artigos Dia a Dia

O LOBISOMEM DA BR-116.

A cidade de Cândido Sales, contrariando todos os prognósticos, nasceu Nova Conquista por confinar com a grande Vitória, sendo obrigada a mudar de nome no início dos anos 1960 quando forçosamente homenagearam o cruel Coronel Candin que nunca teve grande representatividade por este torrão. Em 1942, o então povoado era assediado por famílias influentes do planalto da Conquista (Oliveira, Gusmão, Sales e Ferraz) que viram em nosso município a oportunidade de consolidar o poder político já devidamente espalhado pela região, os Sales/Gusmão se estabeleceram por aqui e passaram a darem as cartas.

Um pouco antes, à Fazenda dos Rocha Viana foi invadida por uma comitiva de bem alinhados senhores de cartolas e polainas, querendo a permissão do patriarca Ângelo (da Rocha Viana) para que parte de suas terras fossem desmatadas em prol da construção da BR- 116 (Rio-Bahia). O que se tinha de mais moderno em tecnologia na época estava aqui na região onde o principal meio de condução ainda eram os lombos dos animais, nos quais, famílias inteiras se deslocavam por longas distâncias (quando não era a pé) em carros-de-boi ou carroças puxadas por jegues ou mulas. Diante da negativa, os distintos cavalheiros (bem vestidos e extremamente educados) partiram sem dizer uma palavra. Passaram-se alguns dias e em uma bela manhã, antes mesmo do nascer do sol, os integrantes do clã Rocha Viana foram abruptamente despertados por um barulho ensurdecedor! Ao saltarem afobados das suas camas, armados com o que tinham ao alcance das mãos (leia-se: espingardas, facões, foices, machados e bodoques) prontos para defenderem com unhas e dentes as suas terras – as crianças correram assombradas, nus, mato adentro -, foram surpreendidos pela potência inigualável de uma frota de tratores importados do “estrangeiro”, que, ignorando solenemente os donos da terra, rasgaram em plena luz do dia (ocultos por uma nuvem de poeira) as “entranhas” da sua principal roça de mandioca, plantada com esforço hercúleo. Sem muitas alternativas e diante do “poder de fogo” dos “invasores”, os Rocha-Viana foram forçados a aceitarem a promessa de uma indenização que nunca aconteceu.

Além dos tratores, a fazenda foi tomada por uma enorme comitiva composta por engenheiros, jagunços (mal cheirosos e mal encarados) fortemente armados e por uma leva de trabalhadores (oriundos de todo Brasil). No grito, na foice, no machado e na carabina a aterrorizada família testemunhou a abertura do grande canyon que se transformaria na rodagem BR-116, a Rio-Bahia. Neste tempo, o nosso “grande centro comercial” era o povoado da Cajazeira (município de Encruzilhada), localizado do outro lado do rio Pardo onde uma ponte de madeira foi provisoriamente construída para a passagem de pessoas e dos poucos veículos que por aqui transitavam. Óbvio que em 1947 já existiam veículos motorizados no Brasil, porém, aqui neste “fim de mundo” carro era igual mulher descompromissada, de vez em quando aparecia algum. Um Jeep aqui, uma Rural ali, um Alpha Romeo e até um Chevrolet 1938… todos, sem exceção, vindos através da “estrada real” do Porto de Santa Cruz. Em 1948, em pleno Governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra, a ponte oficial (ainda existente nos dias de hoje) começou a ser construída. Acidentes, brigas, ataques de onças e de outros animais selvagens faziam parte do cotidiano. Enquanto a “Cavo” (Empresa responsável pela construção) seguia rasgando o terreno onde se construiria a famosa rodagem, uma leva de malandros, prostitutas e sanguessugas seguia o “cortejo” buscando tirar vantagens dos pobres trabalhadores. As “Damas-da-Noite faziam vida” alegrando os rapazes solteiros (e alguns casados) e nos dias de folga, forrós iluminados por fifó’s à base de carbureto eram improvisados. Na falta de mulher, dançavam-se homem com homem, algo muito comum na época. Foi exatamente neste período que desaguou de mala e cuia por estas bandas um mulato alto e forte, cara de índio, de poucas palavras, usando o nome “Tonico Tenente” devidamente sacramentado.

O caboclo chamava a atenção por ser desconfiado feito o diabo, forte feito um touro e de ter o pavio mais curto que as pernas de um preá. Trabalhava na CAVO – Empreiteira responsável pelas obras da futura rodagem. Tonico – segundo ele próprio -, era ex-integrante das forças armadas sergipana, devidamente comprovado através do velho e rasgado coturno (que ele não tirava nem pra tomar banho) e do blusão surrado e remendado, ostentando na algibeira o brasão da gloriosa polícia de Sergipe. Com pouco tempo de trabalho os colegas perceberam que o maior orgulho do caboclo era o bigode de pontas retorcidas que ele ostentava. Tonico Tenente… (apesar de analfabeto) jurava de mãos juntas já ter sido oficial, sendo destituído após dar uma pisa em um major prepotente. Poucos acreditavam na história, porém, o mulato saía do prumo quando questionado.

– Deixa de mentira, Tunicão! Tu lá tem cara de “puliça”? Num sabe nem “assentá” o nome direito e fica “mintino” com esta cara limpa, “cê” deve “tê” achado este casaco no lixo ou no corpo de “argum difunto”. – Berrava Chico Tripa contorcendo a sua magreza.

– “Ôme”! Tu “num” sabes da missa um terço. Eu era muito respeitado pru lá e fazia todo mundo bater “cuntinêça”! Os “praças tudim cumia in” minha mão. Se “pelava” de medo d’eu! Ocê falou bestagem, mas “istá perduado” … gente da sua laia “num” passa de um “rocêro ignoronte” que nuca saiu daqui, nunca viajou de marineta, nunca viu um navio na vida… E reliento que é, “inda” fica duvidando dos outro… Vô te contá, viu!!!

Apesar de acanhado, Tonico Tenente era muito gente boa, quando estava de folga adorava farrear com os companheiros. Dançava um forrobodó danado, bebia tudo quanto há, jogava pelada, pitava cigarro de fumo e adorava namorar as “mulheres perdidas”. O problema era que em noite de lua cheia o moço ficava completamente aluado. Sabia-se que ele era sonâmbulo, porém, havia algo de estranho naquele comportamento. Bastava ter lua cheia para ele ser visto como um zumbi, saindo completamente pelado do acampamento e adentrando a mata virgem e intransponível. Seu ataque de sonambulismo só acontecia em noite de lua cheia. No dia seguinte, o caboclo acordava todo moído dentro de algum buraco ou no meio de alguma moita. Se levantava todo mochilado, mal humorado e muitas vezes sujo de sangue. Inicialmente os companheiros até zoava com o sonambulismo de Tonicão, o problema foram as livusias que passaram a surgir pós caminhada. Primeiro foi o bode de estimação de Expedito – condutor oficial do carro-pipa – que apareceu completamente dilacerado. A “mulé-dama” Maria Bacaninha jurou de mãos juntas que ficou até tarde na lida e viu com os olhos que a terra haveria de comer, um bicho peludo e barulhento rasgar impiedosamente o pescoço do pobre “Juvená”, bode de estimação de Expedito. Poucos acreditaram, já que a divina dama era meio exagerada e gostava de tomar umas canjebrinas à mais, podendo assim não saber direito o que dizia. Os que acreditaram, imaginaram que o pobre bode fora vítima de alguma suçuarana. O pior foi o choro desconsolado de Expedito quando viu o bode Juvená (ou o que restara dele) ser baixado à terra. Ficou vários dias acamado com uma febre violenta. Um mês depois foi a vez de Zé de Tenório estar “batendo um barro” debaixo de uma bananeira, quando deu de frente com o bicho cabeludo, urrando e rasgando tudo quanto há. Zé de Tenório só escapou ileso porque era de uma ligeireza descomunal, mesmo assim, sem tempo pra se limpar, adentrou o alojamento aos berros, todo lambuzado e fedendo feito filhote de gambá. Nunca mais quis fazer as suas necessidades à noite.

O pior foi quando passaram a encontrar uma renca de bichos dilacerados… coelhos, preás, patos, gansos e até corujas. A “suçuarana” estava ficando cada vez mais violenta e pessoas passavam a correr um perigo real. Ninguém entendia o porquê de ela estar sempre seguindo o acampamento e atacando só em noites de lua cheia? Seu Macário Rezador que trabalhava de apontador, todo metido a curador rezou logo uma renca de ladainhas, queimou alguns cartuchos de pólvora e até defumou o ambiente com chifre queimado para harmonizar as energias. De adiantou o esforço do velho, bastou chegar à lua cheia para o bicho cabeludo dar uma bela de uma mordida no pescoço da mula Catarina que auxiliava a turma no trabalho pesado, a mulinha não morreu, mas ficou “descadeirada” para o resto da vida.

À medida que tempo ia passando, bastava ser noite de lua cheia para alguma tragédia acontecer com os animais do acampamento, e, por coincidência, era sempre quando Tonicão ficava sonâmbulo. Bastava a lua riscar o céu para o caboclo sair correndo pelado, floresta adentro.

– Tonicão, Tonicão, para com esta mania de sair pelado pelo mato. Você vai acabar sendo rasgado pelo bicho cabeludo. – Alertava Chico Tripa. – Que rasgado o que, home? Eu sô macho, ele que se atreva! – Tonico Tenente sabia que alguma coisa de ruim estava acontecendo com ele. Bastava a lua surgir pra ele entrar em transe, se levantar, despir-se das vestes e adentrar a floresta igual um aluado. Geralmente acordava ao raiar do dia sem se lembrar de absolutamente nada. As vezes corria para o córrego, se lavava escondido dos companheiros e voltava todo cabreiro, sem trocar uma palavra, sequer.  Alas que em uma bela noite de lua cheia, Chico Tripa, Zé Tenório e Seu Macário resolveram fazer uma armadilha pra ver se pegava o “maledito”. Cavaram um buraco de todo tamanho, cobriu com folhas de bananeira, colocou um barrãozinho gordinho (gritando igual um desvalido) amarrado do lado e ficou só esperando o bicho aparecer.

Mais ou menos meia noite, a lua cheia riscando o céu, o leitão fazendo um barulho disgramado e alas que se ouve um barulho de mato sendo quebrado. Escondido, o trio preparou as carabinas e ficou só esperando a assombração dar as caras. Um silêncio sepulcral, um vento frio queimando a pele, uma enorme tensão no ar e eis que se ouve um urro aterrador, antes do trio dar um piscada surgiu rasgando o mato em uma velocidade estonteante uma coisa horrorosa. Um ser meio bicho, meio homem, com o corpo todo peludo e dois dentões de todo tamanho brilhando à luz do luar. Parou há alguns metros do barrãozinho, deu umas duas boas fungadas e ao olhar para a lua cheia deu um turrado que gelou o coração de quem se encontrava ali. Nesta hora o pavor bateu, e, desesperado, Chico Tripa perdeu de vez as estribeiras, sapecou a espingarda fora e cagando nas próprias pernas botou a boca no mundo: – Corre que é o lobisomem, é o lobisomem… – A fera, pega de surpresa olhou meio de soslaio para Chico que desembestava em direção ao barracão gritando alucinado. Com os olhos fixos no leitão e lambendo os próprios beiços o bicho partiu pra cima da presa, foi quando pisou sobre as folhas caiu dentro da armadilha. Aproveitando a deixa, seu Macário e Zé Tenório saíram dos seus esconderijos e descarregaram as carabinas na fera presa no buraco. Assustado, o bicho deu um pulo descomunal e com uma extrema facilidade saiu do buraco, desembestando mata adentro soltado turrados aterradores.

– Pegamos ele Zé, você viu? É um “Lobisome”.  – Pegamos sim. Ele está ferido. Vamos terminar o serviço. – Sugeriu Zé Tenório. A dupla, reforçada de quase todos os homens do acampamento procuraram a fera até o raiar do dia e nem sinal. De concreto só o sangue preto que ia até às margens do córrego e desaparecia misteriosamente. Nem sinal do lobisomem!

A partir deste dia, coincidência ou não, Tonico Tenente desapareceria completamente do alojamento. Sequer voltou para pegar as suas tralhas ou receber o seu salário. O lobisomem aterrador nunca mais voltou a dar as caras. Até hoje não se sabe o que aconteceu com o famoso ex-militar sergipano, Tonico Tenente. Escafedeu-se misteriosamente.

 

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Maio de 2024. Outono, Lua cheia.