A mãe de um estudante do Colégio Antônio Vieira, no Garcia, ficou indignada ao saber que o livro ‘Pequeno Manual Antirracista’, da filósofa Djamila Ribeiro, está sendo usado nas aulas de religião. Em uma postagem no Instagram, a mulher destacou o fato da autora ser candomblecista. Estudantes contaram que as aulas falam de amor, aceitação e compaixão, e que o combate ao racismo, que é considerado crime desde 1989, é tratado através do livro como um exemplo de como ser um bom cristão. Djamila também se manifestou.
A mãe de aluno começa a publicação questionando se o uso do livro seria um “culto à servidão de ideologias”. Em seguida, publica a imagem da capa do Pequeno Manual Antirracista e a relação de livros trabalhados nas aulas de religião do 8º ano, onde a obra aparece abaixo da Bíblia Sagrada. Na mesma postagem, a mulher compartilha um print da biografia de Djamila, destacando que a mãe da filósofa trabalhava como empregada doméstica e que iniciou a filha no candomblé quando a filósofa tinha 8 anos.
“O que esperar de uma aula de religião em um colégio católico? Não seria apenas a palavra de Deus, o código canônico, as histórias de virtudes dos mártires, mandamentos? Qual é o sentido e o objetivo de utilizar uma autora que vem de família de outra religião, no caso específico candomblé? Existe qualquer conexão com a fé católica?”, pergunta.
Um estudante do 8º ano, que pediu para não ser identificado, contou que o livro é usado na sala de aula para reforçar os princípios da fé cristã. O menino disse que a turma fez um podcast sobre racismo, sobre as diversas manifestações dessa discriminação e como enfrentar o problema para ter uma sociedade mais igualitária e fraterna.
“No Cristianismo, os tópicos principais são fé, amor, aceitação, compaixão, e ser contra a violência, o ódio e a discriminação. O racismo é justamente uma forma de violência e representa tudo o que a religião cristã é contra. O livro é usado no ensino religioso para a gente entender o que é o racismo, para a gente aprender a combatê-lo e nos tornar mais cristãos”, explica.
A repercussão do caso foi imediata. O escritor e roteirista Adalberto Neto, vencedor dos prêmios Shell, Ubuntu e Reconhecimento Popular pelo texto da peça ‘Oboró – Masculinidades negras’, publicou um vídeo. Ele frisou que racismo é uma violência aprendida, muitas vezes, em casa, e que ensinar uma criança a ser antirracista não é cultuar uma ideologia, mas a ser uma cidadã que respeita o próximo apesar das diferenças.
“O amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo, é amar ao próximo mesmo ele sendo de uma raça, credo, gênero, classe social, condição física, condição sexual, idade ou origem de nascimento diferente da sua. Não é amar ao próximo só se o próximo for exatamente igual a você”, afirmou.
O escritor disse que o caso é uma manifestação de racismo religioso, lembrou que isso é crime e que se manifesta de forma estrutural. “Os pais dos alunos desse colégio deviam agradecer por ele ter adotado esse livro como material didático, porque o racismo é um crime previsto por lei. Uma educação antirracista vai evitar que esses alunos cometam crimes e que seus pais tenham que responder por eles na justiça”, disse.
Nas redes sociais, leitores e ex-estudantes do Colégio Antônio Vieira criticaram as postagens da mãe e reforçaram a importância do enfrentamento ao racismo. Uma mulher escreveu: “Fui aluna do Vieira, tive aulas de religião e não tenho o que reclamar. Eles fazem um trabalho muito bom de ensino religioso, abordando as mais diversas religiões, enfatizando, sobretudo, o respeito às diferenças”, disse.
Outra mãe publicou: “Meu filho tem 12 anos e está no 7º ano. Esse livro não está na grade curricular do colégio dele, mas está na minha. Ele vai ler. Espero que, com essa postagem, a procura por esse livro aumente 10, 20, 100 vezes mais!”, escreveu.
O Pequeno Manual Antirracista é uma das obras mais conhecidas da escritora, feminista, professora universitária e mestra em filosofia política Djamila Ribeiro. Em cerca de dez capítulos curtos, a autora discute sobre racismo, negritude, branquitude, violência racial e cultura. Ela aponta as origens do problema, as diferentes formas de manifestação e como enfrentá-lo. Em 2020, o livro foi vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Ciências Humanas e é considerado uma referência nos estudos raciais.
Resposta do Colégio
Essa foi a segunda vez que o Colégio Antônio Vieira foi atacado por conta da bibliografia. Em 2019, mesmo ano do lançamento de Pequeno Manual Antirracista, um publicitário criticou a escola por usar a obra Na Minha Pele, de Lázaro Ramos. Na época, estudantes e ex-alunos defenderam a escola e lembraram que o padre Antônio Vieira, que dá nome ao colégio, lutou ferrenhamente contra a escravidão de povos e as discriminações. O colégio preferiu não se pronunciar.
Desta vez, o Antônio Vieira respondeu através de nota. Confira o posicionamento na íntegra:
O Colégio Antônio Vieira, embasado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, reconhece a importância de garantir o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil. Nesse sentido, adotamos uma abordagem inclusiva que visa tranversalizar toda a nossa prática educativa.
Destacamos a existência do Comitê para Educação Étnico-Racial e de Gênero no Colégio Antônio Vieira, que desempenha um papel fundamental na orientação de ações voltadas para essa temática. As questões antirracistas são trabalhadas em consonância com nosso Projeto Político-Pedagógico, seguindo os fundamentos da Companhia de Jesus e as diretrizes da Igreja Católica, inclusive o Pacto Educativo Global.
Para nós, a educação para as relações étnico-raciais é um imperativo de reconciliação e justiça. Por isso, incluímos livros e materiais didáticos que abordam essa temática de forma ampla e contextualizada em nossas aulas de Ensino Religioso. Essa abordagem não se limita apenas às disciplinas religiosas, mas permeia todo o contexto escolar, refletindo nosso compromisso com a conscientização sobre a importância de respeitar a diversidade.
Reconhecemos a importância da legislação vigente, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei nº 10.639/2003, bem como a Lei 7.716/89 e a Lei 14.532, que fundamentam o racismo como crime e a necessidade de assegurar a efetivação das diretrizes estabelecidas. Nos empenhamos também a cumprir a nota recomendatória da Defensoria Pública da Bahia que ressalta a importante e necessária tomada de medidas para reconhecer e valorizar a história e cultura afro, afro-brasileira e indígena como pilares da formação cultural-identitária do povo brasileiro. Nosso empenho em implementar essas leis é amplo e eficaz, pois nossa missão vai além do ensino acadêmico; buscamos formar cidadãos comprometidos com a construção de um mundo mais inclusivo e solidário.
Resposta da autora
Djamila está de férias nas Bahamas, mas respondeu ao CORREIO. Confira na íntegra o posicionamento da autora:
“Ao longo dos últimos cinco anos, desde que foi lançado, o livro tem contribuído para a pedagogia de conscientização sobre desigualdades históricas no Brasil. Tem sido base da bibliografia de escolas públicas e particulares, de diversas orientações. Um livro que vem contribuindo para uma prática pedagógica antirracista.
Fiquei muito feliz por saber que o Colégio em questão adotou o livro com o argumento de que o combate ao racismo é um valor cristão. E é de fato, Jesus pregou o amor ao próximo. Não sou cristã, porém me encanta a perspectiva da escola. Aliás, sobre isso, a mãe me ataca por eu ser de candomblé, iniciada aos 8 anos de idade. Gostaria de reforçar que o direito à liberdade religiosa é garantido pela Constituição de 1988 e por vivermos em um país laico, independente da escola ser católica, ataques como esse fere a nossa Constituição e limita a humanidade de quem ataca.
Essa mãe precisa estudar sobre o contexto social e racial do país em que vive, sobretudo porque reside em Salvador, um estado com o maior número de população negra, e também estudar sobre as leis que regem a Nação.
No mais, minha solidariedade à comunidade escolar e o endosso ao seu posicionamento cristão em adotar o livro”.
A mulher apagou a postagem após a repercussão. Procurada, ela ainda não se manifestou.
Fonte: Correio24hrs | Foto: Reprodução