Depois de anos ouvindo sempre os velhos alto-falantes que transmitiam música e informação para os quatro cantos do município através dos batidos sistemas radiofônicos, ali pelos meados dos anos 1990, a população de “Candin”, finalmente, através do falecido Mazinho Mota, era contemplada com a criação de uma Rádio Pirata transmitindo em uma determinada frequência, 24 horas por dia para toda a cidade. Emissora esta, construída à base do facão, porém, sua voz chegava aos aparelhos com relativa qualidade. Um velho transmissor adaptado e uma velha antena pregada na ponta de uma vara alta faziam a alegria dos ouvintes. No estúdio não existia praticamente nada, funcionava em uma velha e empoeirada garagem munida de uma providencial saída de emergência já que quase sempre aparecia a Policia Federal (sem avisar) botando todo mundo pra correr, confiscando os equipamentos e deixando a emissora fora do ar.
Esperto, o diretor da emissora não deixava o dele na reta nem com reza braba, assim, os equipamentos eram todos artesanais ou emprestados de terceiros – se fossem confiscados quem perdia era quem emprestava. Um aparelho de DVD de um, um velho microfone envolto em uma flanela amarela de outro, um estabilizador de um terceiro, uma velha antena adaptada no telhado vizinho e cada locutor se virava do jeito que podia levando os seus próprios discos e montando a sua própria programação. Quando a PF chegava era uma correria lascada, e quando alguém era capturado fazia-se logo um rodizio de responsáveis – sabíamos que no máximo éramos intimados a depor. Bastava falar a verdade e tudo bem. Geralmente sobrava para quem estivesse na emissora. Apesar de todas estas dificuldades o sucesso era absoluto e logo várias casas comerciais passaram a anunciar os seus produtos na “emissora” turbinando o bolso de Mazinho que não dava um tostão pra ninguém!
A programação tinha tudo quanto há… programas evangélicos das várias igrejas deste torrão, programa da igreja católica, programa político, jornalismo tendencioso e programas musicais ecléticos visando agradar aos gregos e troianos. Além da minha pessoa que fazia um programa de rock e dividia o informativo com mais dois locutores, contávamos também com o poeta Jaivan Acioly fazendo “Raízes de Cantoria”, Toninho Junior fazendo um programa Pop, José Iris Show tocando os sucessos da noite, Hélio Cabral desfilando toda a sua elegância, Géo Santos com suas músicas românticas (não podemos dizer bregas) e ele, o mais tarimbado locutor da FM 96,5… Martins, o único a ter uma experiência comprovada através de anos a fio como locutor da Voz Independente – Um antigo sistema radiofônico que existia na cidade. Os locutores convidados eram Gereba sempre nos finais de semana, Wilson Amaral e Odenir Ferraz com a sua resenha esportiva.
Sem dúvida o programa de maior audiência era o de Martins que, apesar de ser considerado doido de pedra, era extremamente talentoso e muito popular. O moço comandava de segunda a sexta-feira um programa de variedades com duas horas de duração (das dez ao meio-dia), alavancando a audiência para a Resenha Política e Jornalística da emissora. “O Programa Matinal” – era o mais ouvido pelas mulheres Cândido-Salenses, voltado inteiramente para a família, já que além da programação musical (criteriosamente selecionada), o nobre locutor – que até hoje adora microfone – lia o horóscopo do dia (retirado sempre de um jornal da semana anterior), dava dicas amorosas (sem ter nenhuma experiência prática), entrevistava “personalidades municipais” (era tão narcisista que quando não encontrava entrevistados, entrevistava a si próprio) e sempre tinha alguma dica culinária para as donas de casa. Volta e meia ouvíamos a voz impostada do moço, falando pausadamente, tendo sempre ao fundo uma linda música instrumental para combinar com as suas dicas:
– Minha querida dona de casa, tudo bem com você? Olha nós aqui de novo, teremos hoje uma receita para deixar os comilões empanturrados… Hoje vamos ensinar a abater, limpar e assar frango! Imperdível! Galeto assado com cuscuz… Um oferecimento da Granja Canta Galo! – E assim, todo santo dia, Martins através do seu programa matinal ensinava a técnica de fazer bolos, preparar um bom bife com arroz ou até mesmo fazer um cozido de legumes. Era um sucesso lascado! Tanto que muitas donas de casa só faziam o almoço depois de ouvi-lo atentamente. Dizem que o sucesso muitas vezes sobe à cabeça de quem não se encontra preparado para tê-lo, o assédio diário e até alguns autógrafos que ele era obrigado a dar quando saía às ruas, acabou contribuindo para o fracasso do mais popular radialista da nossa cidade. O jeito Martins de ser despertava o amor das ouvintes e a inveja dos barbados, que o ojerizava. Diante deste sucesso, o locutor começou a fazer alguns lobbys para algumas casas comerciais. Chegava na principal churrascaria e comia de graça, na principal lanchonete lanchava de graça, no bar bebia de graça e assim ia levando, sempre mandando um abraço ou outro para os donos dos estabelecimentos e por tabela ia vendendo o seu peixe. Como nada dura para sempre, eis que um belo dia o velho e bom locutor acabou protagonizando uma cena tão grotesca que acabou entrando para os anais históricos da nossa cidade. Era um dia comum, e, como fazia todo santo dia, o nobre locutor arrancou uma receita simples da página de uma velha revista que lhe chegara às mãos e picou a mula em direção à velha garagem que servia de estúdio para a emissora pirata. Para o seu azar, justamente neste dia o dono do aparelho de CD player que estava emprestado para rádio há mais de uma semana, deu uma “bistunta” e pra lá de chateado pegou o seu aparelho à força. O caboclo que emprestara o aparelho descobriu que o dono da rádio não investia um centavo na programação, porquê ele teria que emprestar o seu novíssimo aparelho? Assim, resolveu levar o que era seu. Ao chegar e ver que não tinha o aparelho Martins faltou endoidar e após tentar conseguir sem sucesso um CD player, viu-se obrigado a se contentar com um toca-fitas caindo aos pedaços que utilizavam aquelas antigas fitinhas cassetes. Depois de suar para montar a sua programação, lá estava Martins falando pelos cotovelos, babando literalmente em cima da flanela que envolvia o microfone e após encaixar delicadamente a fita cassete no toca-fitas, tocou uma ou duas músicas e começou o seu quadro de grande sucesso, as dicas culinárias do dia:
– Minha querida dona de casa… – dizia solenemente. – Muito obrigado pela sua audiência, eu não seria nada sem vocês… E aí, a comida já está no fogo? Muito bem. Vamos fazer a receita de hoje que é ratatouille, delicioso e muito fácil… Alguém aí tem ideia do que é esta culinária francesa? Não, né? É nada mais nada menos que um assado de legumes. Repolho, cenoura, tomate, cebola, pimentão… tudo quando há.
À medida que ia falando, ia intercalando com o fundo musical, embora a falta de retorno dentro do estúdio dificultasse bastante o seu trabalho. Era público e notório que na essência, o referido locutor era considerado – principalmente pelos próprios companheiros – um chato de galocha, porém, naquele dia ele se superou. Sabe-se lá como, fez uma confusão e acabou trocando as fitas cassetes e ao invés de colocar a costumeira música instrumental de Kenny G, colocou como fundo musical o áudio de uma fita pornô que ele levava religiosamente com ele, sempre dentro da velha maleta com dezenas de cassetes. As más línguas diziam que o moço era tão viciado em filmes pornôs que as vezes gravava o áudio para ficar ouvido full time, andando pelas ruas. Neste dia foi de lascar… Imagine só a cena: o cara todo arrumadinho no estúdio, falando delicadamente ao microfone com a voz impostada, ensinando a fazer o ratatouille e ao fundo, os gemidos de um “coito afoito” com uma voz feminina de sotaque nordestino se descabelando: – Vai, amor… vai… não para, não para, não para… – Foram mais ou menos uns dez minutos nesta toada, a cidade toda ligada, padre, pastores, donzelas, crianças, velhinhos e comportados senhores… Todos ouvindo a emissora e os gritos da nordestina alucinada entrando em todas as casas:
– Vem, bem… Não para, não para… – E aí entrava uivos, gemidos, suspiros, e por aí ia… E o locutor, sem fone de ouvido, sem ouvir absolutamente nada, continuava na maior das inocências… – E agora minha amiga dona de casa, corta os legumes em tiras e coloca no forno regado à uma quantidade generosa de azeite, deixa por meia hora, depois é só degustar… Fica uma delícia… – E aí foi rolando aquele burburinho na cidade. Quem estava ouvindo foi falando para o outro, que falava para mais outro e logo todos os rádios da cidade estavam ligados no programa de Martins. Recorde absoluto de audiência. Logo a cidade virou uma grande algazarra com gente pilheriando, outros zoando, senhoras indignadas, alguns adolescentes excitados e o “couro comendo”! – Este prato é saudável, indicado para quem não gosta de carne…. É um prato para se comer lambendo os dedos. Faço todo final de semana lá em casa e a gente come até se empanzinar… Rsrsrsrsrs… – Nesta altura dos acontecimentos a cidade inteira reliava o locutor. A mulherada reunida falando umas nos ouvidos das outras, rapazes gargalhando, senhoras indignadas, evangélicos bradando através da bíblia e nas ondas do rádio a fita rolando com a suruba embutida.
– Aí amor, assim você me mata, vem logo, vou chegar lá, vou chegar lá… – Era putaria pra mais de metro. Diante daquela falta de vergonha não faltou quem amarrasse na manga da camisa e corresse até a casa do diretor para fazer a denúncia.
– Mazim, Mazim – Gritaram no portão. Nesta época o que Mazinho fazia de melhor além de ficar com a grana das propagandas, era namorar. Nesta hora estava nos braços caliente de uma das suas garotas. Ao ouvir os gritos saiu afobado e deu de cara com Joaquim Fofoca (que noticiava tudo o que acontecia no município) e uma multidão. – É o que, Fofoca? Enchendo o saco a estas horas? Quem morreu?
– É a rádio… – gaguejou o arengueiro. – Você tá ouvindo não?
– Não. O que foi? A polícia federal chegou novamente? Se for isso manda Martins dá no pé… Estes caras enchem o saco…
– Pior… liga aí pra você ver… – Afobadaço, Mazinho pegou um radinho à pilha e quando ligou ouviu a voz serena do locutor e o fundo musical pra lá de esculhambado. – Aí amor, devagar, vai, devagar… devagarinho… – Eu não vi, porém, me contaram que após ouvir a indecência todinha em frequência modulada, o diretor que era preto ficou branco igual bicarbonato. Tentou falar, engasgou a voz e sem muitas alternativas pegou o primeiro pedaço de pau que encontrou e saiu louco, correndo pelas ruas. Da casa dele até o estúdio eram 500 metros. O cara fez em menos de um minuto. Foi entrando porta adentro e com uma fúria incontrolável deu logo uma paulada no microfone que caiu no meio da rua, cuja flanela vermelha, fluiu, levada pelo vento. Com os olhos “butucados” pra fora do rosto começou a arrancar toda a fiação que encontrou pela frente e quando o locutor assustando tentou falar, já foi levando um belo sopapo no pé dos ouvidos”. – Cala a boca, seu safado!
– Aí… tá me agredindo, tá doido, Má? – O que aconteceu? – Melhor seria não ter perguntado. Ao ver a cara de poucos amigos do “diretor” o infeliz ainda tentou juntar as suas tralhas dentro de sua inseparável maletinha de madeira, quando o nervoso diretor desceu o porrete fazendo a maletinha em cacos e espalhando fitas para tudo que foi lado. – Merda, Mazim, minha maleta, endoidou? – Endoidou o cacete, seu fí de uma égua, tá querendo acabar com a minha rádio, é? – Já falou chutando bunda do infeliz que saiu tropicando, catando o que restou das fitas. Ao dar de frente com a rua, Martins passou sebo nas canelas e desembestou levando debaixo do braço a maleta completamente destruída, enquanto se desviava dos objetos jogados pelo diretor. – Seu canalha, fila da puta, patife, suma da minha frente, suma! – Morto de medo o nobre locutor capou o gato.
Entre mortos e feridos, salvaram-se todos, porém, a partir daquele dia, o locutor e a rádio (por tabela) deixaram de funcionar e viraram piadas. O motivo alegado para o fechamento da emissora foi a falta de anunciantes.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Abril, Minguante de Outono 2024.