João Mamulengo era um artista oriundo de Sergipe que ao chegar a este torrão na década de 1960, tomou gosto pela água e foi ficado por aqui de mala e cuia. Desaguou ancorado no êxodo que fez uma renca de compatriotas deixarem seus habitats e fugirem da seca que assolava os nove estados do Nordeste. Em pouco tempo o ex circense descobriu que podia ganhar muito mais vendendo madeiras que fazendo piadas sem graça no auditório de um velho circo de lona com a cara pintada. Logo passou a desbravar as rodagens de Minas e São Paulo, conduzindo e vendendo carradas inteiras de baraúna, aroeira e jurema – madeiras que tinha uma enorme aceitação no Sudeste. O lucro que a carga de lascas produzia fez que em pouco tempo o sergipano comprasse e mobiliasse a sua própria casa, passassem a comer o que havia de melhor e suas quatro filhas luxassem com roupas da moda.
Nesta mesma época existia por aqui um porra-louca de 17 anos, filho de seu Ludgero do posto de gasolina. Robertinho era muito gente boa, embora, tivesse um pequeno defeito… fumava uma maconha lascada. Cabeludo, boa pinta, de pouca conversa, o moço adorava se esconder atrás da cannabis. Neste período a filha mais velha de João Mamulengo já estava ficando mocinha e como só andava luxando, logo, passou a despertar a atenção dos varões de “Candin”. Um belo dia lá estava ela com algumas coleguinhas na matinê do cinema de Geraldo quando deu de cara com Robertinho. Do alto dos seus 16 anos ao ver a cara chapada e o sorriso maroto do moço, a mocinha se apaixonou na hora. Uma piscadela, um rápido encontro e não foi que Robertinho meteu os ferros na filha inocente de Mamulengo? Não só meteu os ferros como emprenhou a coitadinha. Emprenhou e caiu fora. Apesar das tentativas, Robertinho depois do mal feito passou a correr às léguas da moça. Recados, bilhetes, choros, velas… nada dava certo. Enquanto o mercador desbravava o Sul de Minas, a barriguinha de Mariinha crescia vertiginosamente. Dona Marieta, a mãe da moça já não sabia mais o que fazer para ocultar os seis meses de gravidez da filha, temia revelar a verdade e o marido fazer alguma desgraça, já que naquela época, moça “desdonzelada” não tinha serventia pra ninguém. Alas que um belo dia ao chegar de viagem, Mamulengo flagrou a filha amarrando a barriga com uma faixa de todo tamanho. Perplexo e alucinado, o sergipano saiu do prumo. – Mariazinha, que diabo de barrigão é esse? O que aconteceu? Me conte aí, vá!… Marieta, me explique de onde veio este barrigão de Mariinha? – Barrigão, não estou achando não, marido. Está até magrinha! – Deixa de lambança, mulher! Eu não nasci ontem não. Maria Aparecida está é prenha. Quem é o pai, quero saber agora?! – A pronta intervenção da mãe evitou uma tragédia, já que furioso, João Mamulengo pulou sobre a filha e passou a lhe garguelar, apavorada, a moça botou a boca no mundo. – Me acode, gente, painho quer me matar! – Fale, sua safada. Quem foi que lhe embuchou? Conta ou arranco o seu couro, sua quenga! – Ái, pai. Me solta, acode aqui gente. ele tá me machucando! – Furioso, Mamulengo apertava o pescoço da filha. – Fala sua cadela, quem lhe embuchou? Vou matar você e ele, fala logo que não estou pra brincadeira não. – Sentido a filha esbugalhar os olhos diante do descontrole do pai, o jeito que dona Marieta achou de resolver o assunto foi meter com força um caldeirão de todo tamanho na cabeça do marido. Foi bater e o marido desmaiar. – Filha, você está bem? – Correu e se abraçou à Mariinha toda descabelada e com o pescoço avermelhado.
– Estou bem, mãe. Estou bem. A senhora matou painho? – Ali, na frente de toda a família, jazia, caído com a boca aberta e com um filete de sangue a lhe escorrer da testa, o chefe da família. – Não. Ele só desmaiou. O que vamos fazer quando ele acordar? – Perguntou a mãe, temerosa. – Vamos contar toda a verdade, mainha. Painho não merece isso não, ele é muito bom pra nós. – Diante do olhar perplexo das outras três irmãs, Mariinha e sua mãe arrastaram o corpo inerte do velho até a cama, lavaram o ferimento com álcool, colocaram pedra hume em cima do corte, um chumaço de algodão embebido em cânfora nas ventas e ficaram só esperando o caboclo acordar. Depois de uns 15 minutos, João acordou gemendo… – Ái minha cabeça, o que se sucedeu? – Perguntou tocando o ferimento. – Você estava querendo matar Mariinha e o caldeirão caiu na sua cabeça. – Mentiu a esposa. – Ah, sim… – falou o caboclo se sentando na cama. – Essa rapariga está prenha! Quero saber quem foi que emprenhou ela. – Pelo amor de Deus, João. Ela vai falar, mas prometa que não vai bater na coitadinha. Basta o que já fizeram com ela. – Depois de pensar um pouco, João se levantou da cama e resolveu ouvir a sua primogênita. Mais desconfiada que cadela em bagageiro de bicicleta a moça adentrou o quarto toda acanhada. Olhou para o pai e já foi se ajoelhando. – Pai, me perdoa, fui seduzida, não tive forças pra resistir à tentação do demônio e o safado me emprenhou! – Me fala só uma coisa, Maria Aparecida. Quem foi o defunto que fez isso com você? Sim. Porque vou sair daqui e vou arrancar o bofe dele no meio da rua pra todo mundo ver. Eu prometo que o safado que fez isso com você ainda hoje vai virar defunto! – Alucinada a moça se agarrou às pernas do pai e implorou: – Faça isso não painho, o senhor não quer que o seu neto nasça sem pai, né? O bichinho precisa conhecer o pai dele. Por favor não mata ele não. – Apôis então fala quem foi o chibungo que lhe emprenhou? – Foi o moleque do Robertinho filho de seu Ludgero do Posto. – Ao ouvir o nome, Mamulengo engasgou, deu um pulo da cama e com os olhos faiscando de ódio gritou: – Aquele maconheiro? Tanta gente boa no mundo e você foi dar logo pra um cabra ruim daquele? Assim você mata seu velho pai antes da hora. Marieta, me traz um copo de água, estou passando mal. – Falou o sergipano se segurando nas paredes. – Acode mãe, painho tá mal. – Após um copo de água com açúcar, o caboclo se acalmou um pouquinho. – Vou lá agora resolver este assunto. – Colocou na cabeça um chapéu de massa (pra cobrir o ferimento) e na capanga uma velha garrucha. – Ele vai se casar de qualquer jeito. Desdonzelou a minha filha, faltou com o respeito, e vai ter que arcar com as consequências. – Pensando assim, lá foi o sergipano até o posto do velho Ludgero ter um tête-à-tête com o filho mais novo. Ao adentrar o recinto bateu de cara com o malandro jogando dominó que já foi querendo correr e o velho apontou a arma: – Parado aí! Vim aqui lhe matar, fila da puta! – Gritou colocando a arma na cara do garoto. Aquele tumulto todo, gente se agachando, outros correndo e Robertinho todo trêmulo com as mãos levantadas. – Pelo amor de Deus seu Mamulengo, sou muito novo, num me mate não! – Você desonrou minha família, seu cachorro, emprenhou minha primogênita. – Vendo o filho encostado na parede tremendo mais que vara verde, seu Ludgero que era um cidadão pacato falou com a voz mais calma do mundo: – O que ouve, seu Mamulengo? O que foi que meu filho “Beta” fez? – Seu moleque emprenhou minha filha Maria Aparecida. Vim aqui lavar minha honra. Ou ele repara o que fez agora ou vai levar um tiro na cara. – “Beta”, toma juízo. Lhe falo direto… Ocê já tá com 16 anos. Hora de ser “home”. – Falou o velho com uma calma admirável. – O que podemos fazer pra reparar este erro, Seu João? – Ou eles se casam agora ou ele vira defunto. – Eu me caso agora mesmo. – Gritou Robertinho aliviado. – Chama o juiz lá. – Em minutos adentra o posto com gente se acotovelando na porta, o juiz Michael com a sua enorme pança e sua cara de réu. Já chegou arrastando Mariinha pelo braço com a sua barriguinha de seis meses. – Aqui está a noiva, vou fazer o casamento agora. – Olha, vou logo avisando que eu não tenho como sustentar uma família, nem trabalho eu tenho. Estou casando forçado, entenderam?
– Isso é problema seu. Você tem duas alternativas, ou casa ou morre.
– No seu caso, melhor casar, né? – Pilheriou o juiz. – Me dá só um minutinho que vou só fazer uma coisinha antes, volto logo. – Falou o jovem entrando no quarto, seguido por Mamulengo. – Se tentar fugir lhe mato na frente de todo mundo. – Que fugir o que, rapaz, me respeita, eu sou lá homem de fugir? – Falou fechando a porta na cara do sogro. No escuro, sentou-se na cama, foi na gaveta, pegou um charuto de maconha de todo tamanho e após duas baforadas voltou rindo mais que espectador de auditório. Antes mesmo do juiz perguntar, ele já dizia o “sim” caindo na risada. Após assinarem o livro ensebado, Mamulengo levou a filha e o agora marido rebocados para casa. Pouco tempo depois conduziu a família inteira até uma casinha estalando de nova. – Taí, seis meses de aluguel pagos, toda mobiliada com tudo que um casal precisa, comprei tudo à prestação e se Deus quiser vou pagar tudinho. Aqui está a nota fiscal da madeira que a partir de amanhã você vai vender em Minas, tá tudo escrito aí no caderno. Você agora tem um filho pra sustentar, heim? Cuidado! – Robertinho ficou apavorado com tanta responsabilidade, porém, melhor aquilo que um tiro na cara, assim, seguiu todas as orientações do sogro e caiu na lapa do mundo com uma carreta de baraúna. Bastou chegar em Minas pra vender por um excelente preço. Após ficar dois dias curtindo bons hotéis e fumando tudo quanto há, Robertinho gastou todo o dinheiro comprando maconha, voltou pra casa com a mochila recheada. Chegou e sequer foi falar como o sogro, fechou-se na morada com a esposa, chamou alguns amigos e passaram uma semana fumando tudo que trouxera. Após saber que o genro havia chegado há quase uma semana, Mamulengo foi ver a farra do lote de vagabundos… ao adentrar a casa deu de cara com uma renca de doidões, com sua filha e o genro entupidos de maconha.
– Rapaz, que é isso? Cadê o dinheiro da madeira que você vendeu? – Todo sorridente, só de sunga, abraçado à esposa só de calcinha, Robertinho respondeu sorrindo. – Comprei tudo de maconha, coroa. Eu e sua filha somos muito doidos, né não, querida? – Falou lascando o beijo na boca de Mariinha, muito doidona, na frente do pai. Sem muitas alternativas, João Mamulengo se sentou no sofá e após ficar vermelho igual um peru teve uma crise violenta de choro:
– Oh, meu Deus! O que fiz pra merecer isso?… Eu mereço isso, senhor? – Após soluçar por alguns minutos, bradou: – Quer saber? Escafedeça da vida da minha filha, suma daqui, vá embora. Este casamento acabou. Larga a minha filha, satanás, suma, vá! – Surpreso e pra lá de aliviado, Robertinho abraçou a renca de parceiros, jogou a mochila nas costas e saiu sorrindo pelas ruas, deixando Mamulengo desesperado, soluçando.
– Amor, espere por mim, eu também vou! Falou Mariinha, correndo atrás dos drogados, só de calcinha no meio da rua. O pobre do Mamulengo trabalhou em dobro para pagar os prejuízos. Sua filha teve o netinho que virou a paixão dos avós. Quanto à Robertinho se mudou de mala e cuia para Vitória da Conquista, deixando Mariinha solteira, nunca mais deu as caras por aqui.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Abril de 2024. Minguante de Outono.