A VÉA DA CABEÇA DE BRASA! (CONTOS DA QUARESMA).
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A VÉA DA CABEÇA DE BRASA! (CONTOS DA QUARESMA).

Quando menino, ali com os meus 13, 14 anos, quando ouvíamos a palavra “quaresma”, entrávamos em pânico. Aquele período que ia da quarta de cinzas até a sexta da paixão era de lascar! De legal mesmo só as quatro seções da “Paixão de Cristo” que passava no cinema de Geraldo na Sexta Santa, tendo na plateia o mecânico Maximino que chorava que era uma beleza durante a exibição. – Não bata nele, não, infeliz! Tão chicoteando o pobrezinho, oi lá! – Morríamos de rir da ingenuidade do caboclo que na vida real era mais bruto que uma cancela. A malhação do Judas (no sábado de Aleluia) também era muito legal, Ninão e sua trupe colocavam um boneco de pano muito do bem vestido (de paletó e gravata) em uma galinhota e rodava os quatro cantos da cidade com uma renca de moleques gritando atrás (eu, no meio) … o que sobrou disso aí não deixou saudades. Imagine, você moleque, ficar abstêmio de carne por uma semana, só comendo piabas, crumatá, traíras, bagre e acaris (o famoso cascudo)? Pior só os que eram obrigados a irem às procissões? Esses faltavam morrer de cãimbras andando a cidade todinha. Tinham os pirracentos como o velho Vespúcio, um ferrenho evangélico que tinha uma loja de artigos de couro e que em plena sexta da paixão – quando todos estavam fechados – se sentava na porta munido de um prato de carne de todo tamanho, matando os concorrentes de raiva: – Seu Vespúcio, hoje é sexta-feira da paixão, além de comer carne o senhor ainda abre a loja? – Com a cara mais limpa do mundo o velho dizia: – Quem foi que disse Cristo morreu hoje? Prove que eu fecho “nestantim”! A quaresma era sinônimo de fé, medo e “malassombros”. Época de a cachorrada estressada sair latindo durante a noite, se estraçalhando. Período em que o estoque de rezas e velas bentas das casas acabavam, com o povo morrendo de medo, com as famílias falando baixinho, se reunindo nos fundos e após acenderem as velas bentas rezavam suas ladainhas ouvindo do lado de fora um tumba lascado com os gritos dos pobres cães apanhado igual mala de mascate. Eram gritos, uivos, gemidos, um barulhão infernal… Na nossa imaginação (turbinada pelo que se contavam e pela escuridão) aquilo eram as livusias lideradas pelo Bicho de Pedra Azul. O advento da chegada da luz elétrica (muito importante para o progresso), dizimou este “encanto”. A geração contemporânea jamais saberá o que representava para nós as histórias do Lobisomem, da Mula-sem-Cabeça e da Mulher de 7 metros… O irônico era que o que nos deixavam pasmos, hoje virou folclore e nos traz saudades. A Nova Conquista do início dos anos 1970 durante a noite era de um breu alucinante e os relatos das assombrações eram contados de porta em porta. Na quaresma as assombrações viravam a porra e desciam a pêa em tudo que atravessassem os seus caminhos. O que existia de moradores afirmando que fora “enrabado” por alguma “aparição” era uma festa. O Bicho da Fortaleza – habitual tocador de terror por estas bandas – era o mais conhecido, pois se dizia transformar em jegue, “marruá”, A VÉA DA CABEÇA DE BRASA! (CONTOS DA QUARESMA). cachorro, pombo, urubu, cobra e em uma infinidade de bichos. A quaresma tinha suas peculiaridades, minha geração pode confirmar. No ano de 1960 da era cristã, no Porto de Santa Cruz deu de aparecer “A Véa da Cabeça de Brasa”, vira e mexe tinha alguém correndo desta visagem. Foi o caso de um negrinho cabeça seca (trabalhador feito o diabo) que vivia por lá e que prestava um relativo serviço àquela comunidade. O caboclo atendia pelo sugestivo nome de Filó e era pau para toda obra, trabalhando duro em tudo quanto há e como ninguém é de ferro, nas horas vagas o que ele fazia de melhor era “enxugar copos”. Quando faturava alguns trocados, chegava todo prosa no Bar de João Saracura e pedia logo era um litro cheio até os beiços de canjebrina. Se sentava todo troncho em uma gameleira e virava o litro na boca com um apetite voraz. Bastavam alguns minutos para ele ficar completamente chumbado e ser conduzido às pressas pelos colegas bebuns até a Casa Paroquial onde morava (de favor) graças a um adjutório do Padre Anfilhófio que tinha muita estima pela sua pessoa, embora, às más línguas afirmassem com relativa convicção que o trabalho voluntário que o caboclo prestava à igreja pagava em dobro toda aquela “bondade”. Eis que em uma sexta da paixão, logo depois das horas mortas lá vinha Filó meio “medicado” trocando as pernas quando trombou bem na porta da igreja com a famosa Véa da Cabeça de Brasa… Paralisado, o caboclinho só conseguiu balbuciar para si mesmo: – É a véa…que merda! – Na sua frente, ardendo em chamas estava Mariquinha de Quilimério, conhecida de todo mundo e que alguns meses antes, decepcionada com a traição do marido, tocara fogo no próprio corpo. A cruel tragédia deixou todo o povoado depressivo. O marido Quilimério envergonhado, dois dias depois, mudou-se de mala e cuia para outras paragens e quando tudo parecia se normalizar, a véa não deu de aparecer bem na porta da igreja? Diante da visão, o pobre Filó, bêbado igual um gambá, butucou os olhos suando mais que cuscuz. A lua brilhando, um silêncio aterrador e ele ali petrificado, contemplando a lapada de fogo que sapecava impiedosamente as vestes da defunta que em um silêncio sepulcral despia-se lentamente da renca de vestidos que usava, assim que se viu livre das vestes passou a flutuar tal qual uma folha seca, plainando de um lado para o outro! À medida que o corpo flutuava, Filó ia ficando arrepiado… À distância contemplava horrorizado o sofrimento da pobre Véa da Cabeça de Brasa. – Valei-me meu Deus “protetô”! O que vai “sê” de mim, meu pai? – Quis correr, as pernas não obedeceram! Mal piscou e já contemplava ali na sua frente a cara desfigurada da velha Mariquinha, a morta! A pele toda gosmenta escorrendo, um olho dependurado, os dentes estufados e a cabeça em brasa… Queria gritar, a voz ficou entalada! O que insistia em sair por um buraco completamente diferente era um líquido gosmento e fedorento, lhe molhando o fundo das calças e escorrendo pelas canelas, sujando suas alpercatas! Aterrorizado, Filó viu a morta à centímetros do seu rosto exigir que ele desse um recado urgente para o padre Anfilhófio: – Filó, cabra sem vergonha! Diga “pru pádi” que estou arrependida! “Priciso” que ele reze uma missa em minha intenção! Estou carecendo do perdão “d’oceis”! Se ele não “rezá” é o “jeitio” eu “vim lhi buscá amenhã de noito”, ouviu? – Falou, “pipocou” e sumiu! A voz de Filó só voltou depois de cinco minutos. Bastou se sentir melhor para o caboclo desembestar morro abaixo berrando igual carneiro: – Socorro, socorro! Me acode aqui! A Véa da Cabeça de Brasa está aqui! – Nessa época quando vinha ao povoado, o Padre Anfilhófio ficava hospedado na casa de Dona Francisca – a beata -, alegando que a casa paroquial era muito solitária. Na verdade (diziam os maliciosos), ele queria mesmo era dividir o cobertor quentinho com Dona Francisca! E assim, Filó já foi chegando à casa da carola soltando os cacetes na porta, dando socos e pontapés e berrando mais alto que o “Jegue de Bastiana”. O pároco se levantou zonzo, ainda de pijama, com uma candeia na mão e um crucifixo na outra e meio sonolento abriu a porta, o neguinho deu um salto tão escandaloso que passou por cima dele e foi cair detrás do sofá! – “Pádi” de Deus!… – Gritou tão alto que acordou a vizinhança inteira! – “Num” deixa não, “pádi”, “num” deixa ela me “pegá” não! – Ela quem, Filó? De quem você está falando? – Perguntou o padre, atônito. – Mariquinha, é ela que é a “Véa da Cabeça de Brasa” que anda assombrando todo mundo, “pádi”! – Falou se agarrando ao padre de forma tão violenta que foi necessária a intervenção de dona Francisca. – Me acode, “pádi”! “Num” deixe ela me “pegá”, não! – dizia aos berros! – Aí, meu São José, pra quê eu fui “minti” na confissão, meu Deus? Perdoe os meus pecados, senhor! Não quero me “quemá” no fogo de “inxofre” não. – Olha aqui, seu Filó! – Falou o padre injuriado, agarrando o infeliz pela goela! – Pare de choradeira! Você é homem ou o que diabo você é? Oh, meu Deus do céu! Que é isto homem, você está todo cagado?! – Falou o padre tampando o nariz. – Ela está aí fora, “pádi”. Ela “qué falá cum sinhô”. “Qué” que reze uma missa e peça por povo “perdoá” ela, faz logo isso se não ela vai “lascá cum nóis tudim, num vai sobrá” ninguém no povoado pra “contá” a história! – Você está falando de quem, moço? Desembucha! – De Mariquinha de Quilimério. A “muié” que “tacô” fogo nela “merma” no dia de natal e “virô” a “Véa da Cabeça de Brasa”! Se o senhor não disser a missa “nóis vai pros zinfernos, pádi”! – Tu deixas de lambança!… – Rosnou o padre irritado! – Dona Francisca, abra a porta e veja quem assombrou este infeliz, veja se tem alguém aí fora? – Mesmo morrendo de medo, Dona Francisca abriu a porta, colocou a candeia acima da cabeça e iluminou de um lado, encandeou do outro e não viu nada… – Tem ninguém não! – Ela está aí fora! Ela está “avuando” com a cabeça “istalando inguale” fogueira em noite de são João! Ela está “quereno” me pegar! – Berrou Filó tremendo de medo! – Ela “qué” me levar “prus zinfernos”! Oh, meu Deus, me ajuda, me acode! – Pera lá!… Pera lá!… – Falou o Padre Anfilhófio, mantendo a calma! – Fique calmo só um pouquinho, se sente aqui nesta cadeira. – Aos poucos foi acalmando “Filó”, que era negro e estava mais branco que um capucho de algodão. – Me conte tudo, meu filho… entendemos que os mortos não voltam, então, o que foi que lhe assustou tanto assim? – Eu já disse que foi ela, “Pádi”, eu juro! A finada Mariquinha de Quilimério! Eu vi com estes “zóios” que a terra haverá de comer! Ela estava “avuando”, vestida com uma renca de vestidos e ardendo na lavareda, “pidino” pra mim “falá pro sinhô pidi” perdão ao povo pra ela”! Se não fizer ela vai ficar pra sempre avuando na porta da igreja igual bacurau. É ela que é a Véa da Cabeça de Brasa! – Olha aqui, seu moleque! – Gritou o padre impaciente. – Essa mulher não existe, ouviu?! Se isso for cachaçada você vai queimar eternamente no inferno quando morrer, entendeu? – Ralhou espumando os cantos da boca! – “Pádi” de Deus! – Falou se ajoelhando. – Eu juro por tudo quando há “pádi”! Eu vi! Eu vi com estes dois “zóios” que a terra haverá de comer! Eu vi a finada “avuando” feito uma “curuja” na porta da igreja com a cara sapecada e com um fogo “verméi” quemano o cabelo dela! “Num istô mintino não sinhô”! – Você jura pela sua santa mãezinha que já morreu? – Juro “inté” pela alma da “voínha”, que enterrou meu “imbigo”! A véa disse que só “rezano” uma missa pra “cabá cum sufrimento” dela! – O padre em silêncio, andou em círculo pela casa, olhou para o caboclinho morto de medo encolhido no canto da parede, e depois de matutar por uns cinco minutos falou com sua voz rouca: – Seu Filó… Eu vou acreditar em você, mas este assunto precisa morrer aqui entre nós pra não assombrar o povo. Jura que não vai falar pra ninguém? Morrendo de medo, o rapazola balançou a cabeça confirmando. Depois foi ao quintal e se lavou com um caneco de água, trêmulo, voltou e se deitou em uma esteira estendida por dona Francisca. No dia seguinte, sabe-se como, “abafaram” completamente o causo! Ninguém falou mais do sucedido. Muitos, por temer a ira de Deus, outros por conveniência. Depois deste dia Filó abdicou completamente da canjebrina e passou a se dedicar de “corpo e alma” às obras da igreja. A história da senhora cuja cabeça ardia em labaredas, bailando na praça da igreja do Porto durante a quaresma foi completamente varrida pra debaixo do tapete, nunca mais se tocou no assunto.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

CSales, BA. Quadra de Março de 2024, Quaresma. Lua Cheia de Outono