MANÉ DOIDO E O DESPERTAR DA PAIXÃO.
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MANÉ DOIDO E O DESPERTAR DA PAIXÃO.

– Olha o que eu sei fazer? – Dizia Mané Doido escalando magnificamente a maior gameleira que existia às margens do Rio Pardo. – Quando crescer eu vou ser tropeiro, eu sei lidar com bichos, sei subir na árvore e sei pular… olha só o que faço… – Do alto da árvore, o jovem (trajando um velho calção rasgado) balançava por alguns segundos em cima de um galho longo e após dar uma risada estridente pulava de ponta cabeça no famoso poço da sucuiú. A plateia era formada por tropeiros/boiadeiros arranchados debaixo na árvore centenária. Ali dormiam, cozinhavam, papeavam, pescavam e tomava as suas canjebrinas. Mané era um nativo do Porto que ainda criança pulou de uma gameleira, bateu a cabeça e ficou meio aluado. Neste dia, do alto dos seus 17 anos, ele insistia para ser “adotado” pelos condutores de bugigangas, usando todo o talento que possuía para divertir os forasteiros. Estamos em 1930, o povoado do Porto de Santa Cruz era o único elo na região entre o Norte e Sul do país. Tropeiros e boiadeiros ficavam um bom tempo arranchados por aquelas bandas. Mané Doido adorava contactar esta gente, e vira e mexe lá estava ele se preparando fugir com os tropeiros. Não faltava quem corresse para fuxicar para Dona Felismina, fazendo a pobre velhinha descer embicada serra abaixo, quase tendo um infarto, para evitar entre choros e velas a partida precoce do filho aluado. Mané era muito popular por lá. Virou unanimidade quando impediu uma tragédia provocada pelo boi de Orozino. Antes disso já era famoso na região por desde muito pequeno possuir uma força descomunal, inclusive, ajudando na construção da Igreja, carregando madeira, fabricando tijolos e conduzindo lajedos. Apesar de pacato e obediente, quando Mané dava um calundu saía todo mundo da frente, derrubava até paredes. Nunca fora encrenqueiro, porém, não tinha medo de nada.

Não foi que um belo dia, após voltar do Rancho de Maria Parida o moço não bateu de testa com um “marruá” enfurecido bem no meio da feira? Pois foi. O bitelo do boi bufa do fazendeiro Orozino, depois de uma crise de infezação se invocou de entrar a esmo povoado adentro em uma carreira lascada em pleno dia de feira, derrubando tudo quanto há. Não deixou uma barraca de pé. Saiu dando coices e chifradas nas bruacas, pisoteando pessoas, botando a molecada pra correr e quebrando tudo o que havia no caminho. Quem estava na frente, temendo ser atropelado, caía na lapa do mundo. Eis que Tiadora, a linda donzela filha de Marieta, ao butucar os olhos na fera, deu uma bistunta e tentou fugir… Pra quê? Alucinada a mocinha tropicou nas próprias pernas e caiu bem na frente do boi. Ao ver a donzela indefesa, o bicho estancou, ficou bufando, esfregando as patas no chão e assoprando o ar pelas ventas. Prestes a ser “chifrada” pelo furioso animal, a garota botou a boca no mundo:

– Me acode, gente. Me acode! O marruá vai me chifrar, me acode!

Tocado pelo coração, “Mané Doido” que passava por acaso naquele exato instante, montado na sua mulinha de estimação, estremeceu-se todo ao contemplar a cena. Tal qual um toureiro sem as vestes, Mané “desapiou” rapidamente da mulinha, e, arrumando forças sabe Deus onde, deu um cascudo tão violento nos cornos do boi bufa que o bicho berrou igual um porco… Foi Mané bater e o bicho “arriar os quartos”. Quem testemunhou a “peleja”, conta que ao fechar novamente o punho direito para dar um novo cascudo, o boi arregalou os “zóios” e saiu caxingando desesperadamente pela feira, arrastando os “quartos” para nunca mais aparecer ali no povoado. Mané foi agraciado com um abraço apertado e um beijo nas bochechas dado com carinho pela donzela Tiadora. O que para ela foi um apenas um gesto de agradecimento, para ele, definitivamente, foi uma prova de amor. Mané arriou os quatro pneus para os lados da linda donzela. A partir daí o moço mudou o penteado, passou a tomar banho, se empapuçar de água de cheiro e sair assoviando com as mãos nos bolsos da sua domingueira.  Se isso não bastasse, o infeliz pediu para Araújo Neto – o pintor do povoado – fazer um retrato grande de Tiadora (naturalmente sem o consentimento da moça), passando a tê-la ao seu lado pendurada na velha parede do seu quarto. Foi aí que Mané Doido entendeu o significado da palavra amor. Com o coração quase saindo pela boca, o moço seguia de dia e de noite os passos da moça. Uma noite foi flagrado se masturbando olhando o corpo desnudo da donzela por uma fresta da janela.

O que ele não sabia era que a sua grande paixão era comprometida e no dia do casamento da donzela com o fazendeiro Abdias – oriundo da cidade de Encruzilhada -, foi necessário juntar uns cinco ou seis homens para conter a fúria de Mané, que completamente aluado, saiu batendo a cabeça em tudo que achava pela frente. Teve que ficar mais de uma semana amarrado. Depois de medicado com garrafadas feitas pelo Mestre Onofre, o retrato de Tiadora foi retirado da parede e queimado no “munturo” por dona Felismina. Depois desse “sucedido”, Mané se esqueceu completamente da doce amada.

Muito tempo depois, eis que chegaram uns boiadeiros trazendo uma boiada do Norte de Minas e, para variar, se arrancharam no povoado. Mané Doido, apenas para chamar a atenção dos homens (já era especialista em se esborrachar na água), cismou de pular da gameleira mais alta do rio. – Olha o que eu sei fazer? – Depois de rodopiar por duas vezes no ar, caiu pesadamente batendo as costas. A queda foi feia, contabilizando três fios de costelas quebrados e o deslocamento do punho direito. O prejuízo só não foi maior porque no meio dos boiadeiros tinha um mulato enorme, chamado Tôin Vicente, homem de imensa intimidade com folhas e raízes, que lhe preparou alguns emplastros que foram utilizados em conluio com uma dúzia de “garrafadas” amargas. Mané ficou acamado por várias semanas até ser levado por dona Felismina, para o terreiro de Mãe Sinhá de Ogum, mãe de santo conhecida e respeitada na região. Sua querida mãe achava que os orixás curariam o seu querido filho. Logo Mané se enturmou no meio e em pouquíssimo tempo essa senhora se afeiçoou ao pobre garoto. Durante o dia ela fazia o ritual da cura pelas ervas. Despia completamente o garoto e o conduzia para um barril de madeira cortado ao meio, cheio até os “beiços” de ervas cozidas. Durante o banho, Mané tinha o seu corpo suavemente esfregado pela mãe de santo que demorava uma eternidade lavando as suas partes íntimas. Na flor da idade (ainda sem conhecer completamente os prazeres carnais), o infeliz ficava mais enrijecido que idoso querendo mijar. O pior era quando o obrigavam a sair da banheira naquele estado, acabava – mesmo sem querer – despertando a desconfiança de dona Felismina, já que sem motivo aparente, Mané corria para o meio do terreiro, se abraçava completamente despido a um toco de pau, e, ensandecido, começava a gritar sofregamente, esfregando violentamente a genitália na parte mais cascuda da madeira. Se esfregava até cair virando os olhos. Ainda nu era jogado dentro do caramanchão no centro de uma estrela de pólvora com o símbolo de Salomão. Um palito de fósforo era aceso e a pólvora causava uma espécie de explosão envolvendo completamente o corpo do rapaz em fumaça. Geralmente Mané saía pior do que entrava. Após ser defumado com incensos de várias fragrâncias, o coitado enlouquecia completamente e (mesmo com as costelas fraturadas) saía dando cabriolas pelo terreiro com saltos mortais, “rolamento” (rodopiava pela cabeça feito um pião), “plantando bananeira” e recebendo “Zé Pilintra”.

O ritual chegava a ser engraçado. Enquanto três ogãs tocavam freneticamente os atabaques, as filhas de santo entoavam os cânticos das chulas, formando uma enorme roda em uma linda cadência, com suas longas saias coloridas e seus turbantes cuidadosamente enrolados nos cabelos. Cantavam, rodavam, abraçavam quem comparecia e distribuíam os passes. Mané, no auge dos seus 17 anos, até que dava um caldo… forte, peito definido, músculos delineados, barbudo e cabeludo. Quando estava incorporado a quantidade de “filhas de santo” que dançavam esfregando a “derriére” nas partes íntimas do rapaz metia até medo. O assédio era tamanho que na maioria das vezes era necessário a intervenção de Mãe Sinhá de Ogum, que expulsava as “concorrentes” no “sopapo” para em seguida dançar o resto da noite, rebolando literalmente no vai-e-vem dos quadris do rapaz.

Alas que em um destes candomblés, a filha de santo Madalena Nicolau, uma descontraída senhora rechonchuda, casada com o Cabo Juvelino, tomou mal tomado duas talagadas de canjebrina e quando teve a oportunidade de sambar com o aluado, aproveitou a distração de Mãe Sinhá (incorporada) e o levou à força para detrás da bananeira que existia na frente do caramanchão. Subindo pelas paredes de vontade a senhora foi arrancando logo as vestes do garoto e enfiando a língua na garganta do infeliz. Sem saber o que fazer e se sentindo sufocado, Mané fez a única coisa que podia naquele momento. Abriu o berro:

– Ô mãe, Madalena tá fazendo ousadia, mas eu! – Pra que? Ao ouvir o grito do pupilo a mãe de santo correu para o quintal e acompanhada de todo mundo, deparou com Mané em ponto de bala sendo assediado pela descontrolada esposa do cabo. Ao ver a cena Mãe Sinhá perdeu completamente as estribeiras e meteu a mão na cara de Madalena. – Solta ele sua chibunga! Está querendo comer o que não plantou, é? – Ao ser agredida, a rechonchuda agarrou a longa cabeleira de mãe Sinhá e rolaram pelo chão, trocando tabefes, arranhões e mordidas diante dos olhos estupefatos dos frequentadores do terreiro. Só pararam com a providencial chegada do Cabo Juvelino, que como um marido bom e fiel, acreditou piamente que tudo aquilo fora arte da Pomba-Gira, insatisfeita com um despacho mal feito. A partir desta data dona Felismina levou Mané diretamente para a Igreja Católica onde ficou por vários anos sendo o condutor da imensa cruz de madeira nas procissões do povoado. A mãe de santo passou o resto dos seus dias suspirando a ausência do jovem e dotado, Mané Doido.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Março, Minguante de Verão 2024.