Este torrão nasceu Nova Conquista, foi emancipada em 5 de julho de 1962, quando, por força de uma pressão descomunal, virou Cândido Sales, embora ainda hoje seja conhecida como a prima pobre de Vitória da Conquista. Após à segunda eleição, em consideração às respeitáveis famílias Cândido-Salenses, a primeira coisa que o prefeito eleito fez, foi retirar à força do centro da cidade o baixo meretrício, denominado “Pela-Porco”. Após a forçada saída das “meninas-de-vida-fácil”, as alcovas foram demolidas e o espaço foi transformado em uma graciosa praça, extremamente arborizada. Em 1967 o intendente deu uma bistunta e resolveu fazer a primeira comemoração da nossa emancipação. Como não havia um espaço digno para a realização dos festejos, o jeito foi improvisar a recém-construída praça arborizada para o evento. Um chamativo cenário foi montado à toque de caixa, retiraram o lixo, ensacaram as folhas caídas, as árvores foram pintadas, uma gambiarra colorida estendida, estenderam algumas faixas elogiosas e a sociedade do recém-emancipado município, convidada.
Neste tempo deu por este torrão, um aluado todo diferente, conhecido pela alcunha de “Late Cadela”. O apelido deu-se porque que toda vez que o caboclo (geralmente uma pessoa tranquila) encontrava pelo caminho algum gato ou cachorro, era um “Deus nos acuda”. Ficava de cócoras e passava a latir para o infeliz. No caso dos gatos, Late Cadela corria atrás dos bichinhos, de quatro pés como se realmente fosse um cão. Quando os gatos encontravam uma árvore ou um poste para subir, o doido, revoltado (incapaz de fazer o mesmo), ficava horas latindo na parte de baixo, assombrando o bichano. No caso específico das cadelas, assim que ele via alguma, começava logo a rodeá-la tal qual um “cadelo” e só não acontecia a consubstanciação porque a intervenção da guarda municipal era providencial. Tirando este pequeno “inconveniente”, o moço até que era boa praça. Jovem, 26 anos aproximadamente, forte feito um “marruá”, barbudo e cabeludo – tal qual os hippies que davam por aqui -, e se não fosse o fedor inconveniente que era exalado do seu corpanzil, poderia até ser confundido com aqueles jovens rebeldes que caminhavam (ou pegavam carona) pela rodagem BR-116 no auge do movimento!
Late era um doido que não botava medo em ninguém (nem mesmo nas crianças), cumprimentavam todos com uma educação digna da “normalidade humana”. Não enchia o saco de ninguém, era muito na dele. Se lhe dessem comida ele comia, se não dessem, ele também não dava a mínima. Era tão bacana que a molecada “atentava” tudo que era doido, mas com Late, ninguém falava absolutamente nada. Dona Iaiá, a professora, deixava até ele ficar no pátio do colégio de quando em vez. Se uma velhinha estivesse conduzindo uma feira, lá estava ele ajudando sem querer nada em troca. Fazia a maioria dos serviços pesados da cidade com uma invejável presteza, sem cobrar um tostão.
Uma vez foi até citado pelo prefeito em plena campanha municipal. Mais da metade da população se encontrava lá no comício do beco estreito, uma multidão medonha aplaudindo o intendente, gente suando em cima de uma carroceria de caminhão cheia até os beiços e quando para surpresa de todos, ele visualizou alguém no meio da plateia e bradou:
– Um abraço aí para o meu querido amigo Late Cadela, o doido mais popular da cidade! Abração, meu querido!
Claro que muita gente não entendeu, até porque era sabido por todos que Late Cadela nunca fora eleitor, mas, dizem que político que se preza faz qualquer coisa para chamar a atenção… O número de aplausos que o intendente recebeu naquele momento pode ter decidido a peleja a favor dele. Só sei que a partir daquele dia, em todo e qualquer evento realizado pela Prefeitura, fizesse chuva ou sol, lá estava Late Cadela, mais feliz que pinto no lixo, na frente de todo mundo, aplaudindo efusivamente o gestor, mesmo quando isso não era necessário. Resumindo, todo morador do município passou a ter certeza absoluta… se Late Cadela – que era doido varrido – apoiava o prefeito, quem haveria de ser contra? O vencedor já estava definido.
Alas que chega o grande dia da comemoração do primeiro aniversário deste torrão, empolgado, o nosso gestor não economizou convites, saiu de porta em porta convidando cada um dos moradores. A coordenação dos festejos ficou a cargo da primeira dama, que neste dia se levantou meio aluada e após dar uma bistunta, quis porque quis que o excelentíssimo senhor prefeito (no caso, marido dela) fosse pessoalmente até o baixo meretrício e convidasse as “meninas”. Não era para deixar nenhum morador de fora da festa. Após convidar pessoalmente todos os seus munícipes, a primeira dama estendeu o convite para Dona Maricota, uma senhora que rezava a lenda, havia sido cooptada em um cabaré do Bairro Jurema em Vitória da Conquista e que após se matrimoniar com Joca Lojista, tornara-se uma respeitável cidadã evangélica e exemplar mãe de família da recém-emancipada cidade.
De posse da autoridade de produtora dos festejos, a excitada primeira dama exigiu que todos os funcionários pintassem de cal os meios-fios da praça (sabe como é cidade pequena, né?), construiu em tempo recorde um barracão todo enfeitado, mandou trazer às pressas uma orquestra filarmônica diretamente de Vitória da Conquista e de quebra convidou uma meia dúzia de prefeitos das redondezas e mais uns dois ou três deputados, destes que só aparecem em época de eleição. Em falta de um local mais adequado, levantou o barracão no centro da praça (torcendo, obviamente para que não chovesse) e após uma decoração (feita a grossos modos) com pano de chita, estendeu um vistoso tapete vermelho no centro do jardim, improvisando uma mesa com mais de 100 lugares, destacando, obviamente, um trono para o Prefeito pra lá de reforçado e cheio de fitas coloridas. Como nada vem de graça, os funcionários de confiança se encarregaram de trazer um prato de salgados das suas casas, os mais abastados levaram as bebidas (leia-se: Conhaque, Rum Bacardi, Uísque, Martini e até Jurubeba Leão do Norte). Mesa posta, fizeram um fogo no meio do jardim onde um caldeirão de zinco reluzente, entupido até os beiços de quentão, borbulhava sob o fogo, fazendo literalmente a festa da prole, que na base da empolgação se fartava de tanto beber.
Um dos assessores mais criativos da administração criou um prêmio para quem compusesse o hino oficial da cidade (obviamente, um concurso com cartas marcadas, já que assim que o vencedor foi anunciado o hino já se encontrava pronto – e gravado em fita cassete – para ser executado pela Orquestra Filarmônica) e em falta do que fazer, a população compareceu em grande número, fazendo tremer o chão da praça. Depois da escolha do hino oficial e da farta distribuição de bebidas e comidas – tendo o galeto como prato principal -, o intendente – querendo fazer média com os seus munícipes -, falou por mais de duas horas ininterruptas em um visível estado de embriaguez, prometendo mundos e fundos para o recém-emancipado município, sendo aplaudido de pé pela maioria absoluta dos presentes que, na verdade, queria mesmo era comer e beber de graça.
Após a fala do digníssimo e de mais uma ou duas autoridades convidadas, adentrou o recinto com uma roupa pra lá de vistosa, Dona Maricota – a famosa evangélica – rebolando sobre um salto enorme, provavelmente se lembrando dos seus áureos dias no Jurema. Vestindo um longa transparente, usando um chapelão esquisito, um óculo escuro em plena noite, com a boca toda lambuzada de batom vermelho, trazendo a tiracolo, Fifi, a sua cadela de estimação que neste dia estava toda penteada e cheia de água de cheiro. Entrou em uma elegância indescritível e após distribuir beijinhos nas bochechas da primeira dama e das principais autoridades presentes, deu de se sentar bem na fila em que se encontrava Late Cadela – que neste dia compareceu de banho tomado, cabelos escovados e até trajando um vistoso terno azul marinho para prestigiar o evento.
A festa rolando com a Filarmônica Conquistense tocando os principais clássicos da música mundial, os mais afoitos dançando frenicamente, tudo parecendo dentro da normalidade quando Fifi dá uma bistunta e olha com os “zoiões” pidões em direção à Late Cadela. A química foi imediata, parecia até que a cadelinha estava no cio. O que se viu a partir deste momento foi constrangedor: ela rosnou em direção a ele com aquela carinha de cachorrinha sem-vergonha, fazendo o doido ficar todo arrepiado! Mal terminara de rosnar, eis que feito um cachorro louco e desgovernado, Late Cadela pulou em cima da mesa, ignorando solenemente a primeira dama que se encontrava no caminho. Foi um escândalo! O choque foi tão forte que a reforçada mesa de madeira feita exclusivamente para a ocasião, veio a baixo derrubando a comida, as bebidas, o prefeito (que caiu, mas não soltou o copo de uísque), os deputados convidados, a primeira dama e meia dúzia de vereadores, todos devidamente acompanhados das esposas e dos respectivos cabos eleitorais.
Foi Fifi correndo, Dona Maricota tentando segurá-la e Late Cadela, mais arrepiado que cachorro louco, querendo agarrá-la à força no meio do jardim diante dos olhares estupefatos dos presentes.
Teve gente da oposição que até gostou de ver a tragédia! Fifi desesperada, com Late Cadela louco de pedra, latindo atrás, querendo subir em cima da coitadinha à força enquanto dona Maricota dava fortes vassouradas na cabeça do pobre doido! A coisa foi medonha. Só conseguiram amenizar o tumulto quando a primeira dama usando de toda a sua autoridade, exigiu que o efetivo da guarda municipal (já devidamente “medicado”) interviesse, distribuindo cassetetadas à torto e a direito, imobilizando o aluado. Mesmo dominado e todo amarrado, Late Cadela parecia um lobo urrando para a lua, enquanto Fifi – morrendo de medo – se escondia na enorme bolsa que dona Maricota a conduzia.
Após as coisas se assentarem, o jardim ficou mais parecido com um campo de batalha, com pessoas pisoteadas, madames desmaiadas, gente ralada, a oposição e as “damas-da-noite” vaiando efusivamente e Late Cadela, tal qual um cachorro louco urrando descontroladamente. Após uma breve confabulação das autoridades presentes, despacharam o pobre doido às pressas em um caminhão Papa jipe para uma cidade vizinha e dentro da hipocrisia que norteia a conduta política, ninguém mais tocou no assunto, se esquecendo completamente do dia em que Late Cadela quase “traçou” a coitada da Fifi, a cadelinha mais fofa município!
O problema maior é que desde este trágico sucedido, Fifi perdeu toda a sua alegria, passando a andar pelos cantos, toda tristonha, cabisbaixa, sonolenta, chorosa… Deve ser a saudade de Late Cadela!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Janeiro
Crescente de Verão de 2024.