A programação especial dos 183 anos da emancipação política de Vitória da Conquista refletiu algumas características da diversidade religiosa existente no município – e, principalmente, a maneira com que o poder público municipal costuma lidar com as diferentes crenças manifestadas pela população.
A primeira atividade a compor o roteiro comemorativo, por exemplo, foi um abraço simbólico na praça Desembargador Mármore Neto, realizado no dia 5, que reuniu representantes locais das comunidades católica, evangélica, espírita e das religiões de matriz africana.
Outra ação, ocorrida no dia 8, no bairro Miro Cairo, e igualmente incluída na programação de aniversário, foi o tombamento do Terreiro de Candomblé Lojereci Nação Ijesá (Ilê Asé ABC Alaketu) como Patrimônio Cultural e Histórico do Município de Vitória da Conquista. A casa foi fundada há 35 anos e é mais conhecida como Terreiro de Pai Jorge.
Já no dia 9, as festividades começaram pela manhã com a tradicional missa em ação de graças, na Catedral Nossa Senhora das Vitórias. E prosseguiram à tarde com a Marcha para Jesus, evento anual que, mais uma vez, reuniu milhares de fiéis evangélicos num cortejo que começou na praça Norberto Aurich e terminou no Centro Cultural Glauber Rocha, ao som de pregações e músicas ligadas ao estilo gospel.
Ao incluir nas comemorações pelo aniversário da cidade segmentos distintos, com fiéis oriundos de diferentes credos, o Governo Municipal põe em prática a orientação laica que a Constituição Federal determina ao Estado brasileiro – e que, portanto, deve ser seguida em todas as instâncias administrativas.
Afinal, não é de hoje que o poder público municipal convive com representações religiosas diferentes, atendendo-lhes reivindicações específicas e estabelecendo parcerias em projetos institucionais de assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade. Ao longo dos 183 anos de emancipação política, a população de Vitória da Conquista foi crescendo e as opções na busca por conforto espiritual foram se tornando mais variadas.
Município foi fundado sob o catolicismo
A presença do catolicismo em Vitória da Conquista remonta à colonização do Sertão da Ressaca pelos portugueses. A Catedral de Nossa Senhora das Vitórias, onde se realiza anualmente a missa em ação de graças pelo aniversário da cidade, foi fundada em 1820 e está diretamente ligada à origem do Arraial da Conquista, quando bandeirantes comandados pelo português João Gonçalves da Costa subjugaram e expulsaram da região os povos indígenas das etnias Imboré, Pataxó e Mongoió, que já habitavam originalmente o Sertão da Ressaca.
Depois de eliminar os povos originários, os enviados da Coroa Portuguesa construíram a primeira igreja do novo arraial, na encosta da Serra do Periperi. A construção era simbólica, pois sinalizava a “conquista” definitiva do território, por meio da imposição da cultura religiosa dos invasores. “Antigamente, nas pequenas cidades, as coisas mais importantes que eles construíam eram: primeiro, a igreja. Depois, a prefeitura e o quartel de polícia. E depois de muito tempo é que vinha a escola”, explica o professor e escritor Durval Menezes, autor de nove livros sobre aspectos da história de Vitória da Conquista.
Estudioso da religiosidade afro-indígena-brasileira na região Sudoeste da Bahia, o professor Itamar Aguiar afirma, no artigo “Os candomblés do sertão: a diversidade religiosa afro-indígena brasileira”, que os interesses dos exploradores portugueses na conquista das novas terras não eram apenas econômicos, e incluíam também a difusão do catolicismo.
“[…] para este fim, fizeram uso dos serviços das ordens católicas dos Carmelitas, Beneditinos ou Capuchinhos e dos Jesuítas, para quem os índios eram vistos como pagãos e, deveriam ser catequizados para a fé cristã e outros interesses próprios da Igreja em geral e das Ordens religiosas em particular”, escreveu Itamar, que é doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).
A primeira Igreja Matriz foi demolida na década de 1930 para dar lugar à nova edificação, concluída em 1944, cujo projeto seguiu o estilo neogótico – talvez por influência das características arquitetônicas do templo que sediava a Diocese de Amargosa, à qual os fiéis conquistenses eram vinculados, antes de se constituírem numa diocese própria. Essa mudança ocorreu em 1957, quando o papa Pio 12 determinou o desmembramento e fundou a Diocese de Vitória da Conquista. Assim, a Igreja Matriz passou a ser chamada de Catedral.
Em 2002, o papa João Paulo 2º elevou a Diocese à categoria de Arquidiocese Metropolitana, configuração que se mantém, atualmente, sob a gestão do arcebispo dom Josafá Menezes da Silva, abrangendo 34 paróquias distribuídas por 20 municípios, formando um território com área total de 25.089 quilômetros quadrados.
Protestantismo começou com os batistas
Os batistas foram o primeiro segmento do protestantismo a se fixar em Vitória da Conquista, ainda no final do Século 19. O atual templo da Primeira Igreja Batista de Vitória da Conquista, situado na divisão entre as atuais praças Barão do Rio Branco e Caixeiros Viajantes, é o quarto a ser utilizado pelos seguidores dessa denominação. Começou a ser construído em 1958 e foi inaugurado em 1966.
Mas a prática cristã protestante, em âmbito local, começou bem antes. De acordo com o jornalista Marcos Infante, que pesquisou sobre o início da Igreja Batista no município, o pioneiro foi o fazendeiro Tertuliano da Silva Gusmão, que teve o primeiro contato com o protestantismo após uma viagem a Santo Antônio de Jesus, a fim de comercializar gado.
Na viagem de volta, ao parar numa hospedaria em Jaguaquara, o fazendeiro teria conhecido um rapaz que lhe apresentou os evangelhos. “Ali, ele e sua comitiva protegeram um jovem missionário que estava sendo perseguido por pregar o evangelho. O jovem viajou com Tertuliano até Jequié. Ao se despedirem, em agradecimento, ele presenteou Tertuliano com uma Bíblia, algo raro na época”, narra Marcos.
“Tertuliano chegou em Conquista e começou a ler a Bíblia. Abraçou a fé cristã protestante e começou a reunir familiares e amigos para ler e estudar a Bíblia”, conclui o jornalista.
Ainda de acordo com a pesquisa feita por Marcos, em 1897 havia 37 evangélicos na cidade. Em 22 de outubro de 1899, foram realizados os primeiros batismos da nova doutrina. E, em 4 de fevereiro de 1900, com 55 membros, surgiu oficialmente a Primeira Igreja Batista de Vitória da Conquista, que veio a ser a primeira igreja evangélica no município. “O primeiro imóvel a funcionar como templo batista foi uma casa de adobe na fazenda Felícia, de propriedade do fazendeiro Tertuliano da Silva Gusmão”, informa Marcos.
A Marcha para Jesus deste ano foi, novamente, a culminância da 17ª Semana da Cultura Evangélica, evento que integra o calendário oficial do município. A Associação dos Pastores Evangélicos de Vitória da Conquista (Apevic), entidade que organiza o festejo, estima que existam hoje no município cerca de 600 templos protestantes, entre sedes e congregações.
Não há informações precisas sobre a quantidade atual de cristãos evangélicos em Vitória da Conquista – como, de resto, não é seguro informar o número de seguidores de outras religiões. As fontes oficiais mais recentes, do Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE).
No caso dos evangélicos, esse levantamento informou que, 13 anos atrás, havia em Vitória da Conquista 75.880 indivíduos que se identificavam como seguidores do cristianismo protestante.
O pastor George Costa, presidente da Apevic, calcula que, hoje, este número deva estar bem mais alto. “Ainda não saiu o Censo Religioso. Creio que este número é muito maior. Considerando a média nacional de crescimento de 30% na última década, cremos em um número de 95 mil evangélicos”, defende o religioso.
O mesmo Censo de 2010 também apontou números – que, seguramente, já sofreram o mesmo nível de defasagem – para uma série de outras religiões entre os conquistenses, sendo a mais predominante o catolicismo romano, então com 183.442 fiéis. O espiritismo aparecia com 5.502. Somando-se as quantidades indicadas nos itens candomblé (283), umbanda (80), umbanda e candomblé (450) e “outras denominações de religiosidades afro-brasileiras” (87), o levantamento indicava haver um total de 900 praticantes autodeclarados do universo religioso de matriz africana.
Religiosidade afro-brasileira e a luta contra a intolerância
Um levantamento feito pela Coordenação de Promoção da Igualdade Racial, vinculada à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, apontou para a existência de pelo menos 200 terreiros atualmente em Vitória da Conquista. Entre essas casas religiosas, cujas primeiras manifestações podem ter ocorrido nas primeiras décadas do Século 20, incluem-se centros de Candomblé vinculados às nações Ketu e Angola, além de casas de umbanda e outras variações de cultos afro-brasileiros.
Entre os pioneiros, em Vitória da Conquista, destacam-se Dona Emerentina, considerada a primeira yalorixá da cidade a iniciar outras pessoas nos ritos do Candomblé, e seu companheiro, Pai Neco.
O casal fundou um terreiro de Candomblé na década de 1950. Mas há registros de outras lideranças religiosas que começaram a atuar em Vitória da Conquista nas décadas de 1930 e 1940, como Mãe Tilinha e Mãe Vitória de Petu – esta última, mantinha um terreiro na rua da Corrente, na área que hoje faz parte do bairro Alto Maron. Atualmente, Mãe Vitória de Petu nomeia uma escola municipal no bairro Petrópolis, recentemente reformada e reinaugurada pela Prefeitura.
No bairro Pedrinhas, a matriarca Maria Petronília dos Santos, conhecida como Vó Dôla e falecida em 2006, consolidou-se como liderança comunitária e religiosa no chamado Beco de Vó Dôla. O território está em vias de ser reconhecido pela Fundação Palmares como o primeiro quilombo urbano de Vitória da Conquista. Todo o processo de documentação, em busca do reconhecimento oficial, contou com a participação da Prefeitura, por meio da Coordenação de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
Outro líder religioso muito lembrado por populares e estudiosos é José Oliveira dos Santos (1914-1976), o popular Zé Pequeno, “curador” de tradição banto/indígena que liderou um terreiro conhecido como Congá de Nossa Senhora da Conceição, entre as décadas de 1930 e 1970.
Zé Pequeno também se tornou tema de pesquisa científica – a dissertação de Mestrado “Um curador sertanejo: memória e religiosidade afro-brasileira”, escrita pelo babalorixá Ruddy Aquino Wanderley como conclusão do Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), em 2012.
Hoje, o “curador” Zé Pequeno empresta seu nome a uma das ruas mais conhecidas do bairro Jurema, em cujas imediações se localizava seu centro religioso.
Muito do conhecimento que se tem hoje, sobre o universo dos cultos de matriz africana em Vitória da Conquista, deve-se ao trabalho de pesquisa do professor Itamar Aguiar, que resultou na dissertação “As religiões afro-brasileiras em Vitória da Conquista: caminhos da diversidade”, apresentada em 1999 como conclusão do curso de Mestrado em Ciências Sociais pela PUC-SP.
O trabalho é considerado um marco inicial do processo de visibilização das práticas religiosas de matriz africana em Vitória da Conquista. “É o documento mais importante”, avalia o coordenador de Igualdade Racial, Ricardo Alves. Na época em que foi publicada, a pesquisa de Itamar trouxe um levantamento etnográfico dos terreiros na cidade. Ele identificou a existência de 75 casas em 1999, sendo 60 de umbanda, 13 de candomblé de Angola, um de candomblé Angola/Ketu e outro de candomblé Ketu.
A publicação dessas informações contribuiu para que os adeptos dos cultos afro-brasileiros começassem a deixar a marginalização a que eram relegados, por serem alvos de preconceitos de ordem racial e intolerância religiosa. “As histórias do povo de santo são passadas de boca a boca. E uma parcela significativa da sociedade, que procura os terreiros, mas não assume sua crença, geralmente se assume católico ou espírita. Isso é efeito de um racismo estrutural que retalia a fé nas matrizes africanas”, analisa Ricardo.
Espiritismo é tradição consolidada
A tradicional Semana Espírita de Vitória da Conquista, cuja 70ª edição ocorreu entre 1º e 10 de setembro deste ano, no Centro de Convenções Divaldo Franco, teve novamente a presença de um representante do Governo Municipal em sua cerimônia de abertura – no caso, a prefeita Sheila Lemos, que, ao comentar o retorno do evento às atividades presenciais, depois de dois anos em formato on-line, devido à pandemia da Covid-19, sintetizou o que a Semana Espírita significa para Vitória da Conquista.
“Este evento está no coração dos conquistenses”, exultou Sheila, incluindo nessa afirmação até mesmo os moradores que não se declaram como espíritas. “Estamos felizes por estar de volta de maneira presencial e recebendo espíritas de todo o Brasil em nossa cidade”, disse ainda a prefeita, referindo-se ao que normalmente ocorre durante as edições da Semana Espírita, quando Vitória da Conquista se torna, temporariamente, uma espécie de centro das atenções para os kardecistas de todo o país.
Para se compreender esse nível de consolidação, é preciso considerar que a primeira edição da Semana Espírita conquistense foi em 1954, pouco depois da criação da União Espírita de Vitória da Conquista (UEVC). E que o início dos trabalhos espíritas no município ocorreu no Século 19, pouco mais de 20 anos após o educador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, sob o pseudônimo Allan Kardec, codificar e sistematizar o “Livro dos espíritos”, um tratado de inspirações científicas e filosóficas que ficaria internacionalmente conhecido como a Doutrina Kardecista.
Segundo um levantamento histórico divulgado pela UEVC, o primeiro a se dedicar ao kardecismo, em Vitória da Conquista, foi o professor Ernesto Dantas, então recém-chegado de Caetité. Por volta de 1880, ao lado de outras figuras como o coronel Francisco Andrade, Dantas deu início a um grupo de estudos espíritas em sua fazenda Jequitibá. Tempos depois, em 1906, tendo colaboradores como João Dantas Barreto e César Vieira de Andrade, fundou o Centro Espírita Conquistense, a primeira instituição kardecista da cidade.
Durante as primeiras décadas do Século 20, vários dos chamados “coronéis” conquistenses se aproximaram dos estudos espíritas, como o já mencionado Francisco Andrade, Florentino Mendes de Andrade e Paulino Fonseca – o qual chegou a ocupar o cargo de intendente de Conquista de janeiro a setembro de 1922. Outros que atuaram como trabalhadores da doutrina foram profissionais liberais que, como o pioneiro Ernesto Dantas, mudaram-se para Conquista por questões profissionais, a exemplo de Zoroastro Pinto, José de Oliveira Lima, Olímpio Benício dos Santos, Aloysio Pereira da Silva, Anísio Neves, Saul Quadros, Maria Dagmar Ferreira e Luis Barreto, entre outros.
E houve os espíritas históricos que eram conquistenses de nascimento, entre os quais Dalva Flores (filha de Olívia Flores), Ariosvaldo Oliveira (conhecido como Caboclinho) e os irmãos Alziro e Alfredo Prates (Filó), além de vários outros.
Fonte das imagens históricas: fotosdevitoriadaconquista.wordpress.com
Fonte: PMVC | Foto: PMVC