Altas horas, lua cheia brilhando no céu, e lá vem uma figura trôpega caminhando desengonçada… vai sorrateiramente até o quintal da fazenda do Véi Roxo, pula a cerca com maestria, adentra o poleiro cheio até os beiços de galinhas e depois de alguns minutos ouve-se um barulhão com gritos, pulos, cacarejo e o diabo à quatro. Seu Roxo aparece só de ceroula na porta da cozinha munido do seu indefectível bacamarte e após apontar para o “bicho” que tocava terror no seu poleiro, mete o dedo e um barulho ensurdecedor faz-se ouvir acompanhado de um rastro de fumaça preta que demora uma eternidade para se dissipar. Olhos atentos veria um sujeito estranho, trajando peles de bode e carneiro, com uma cabeça esquelética de chifres retorcidos, pular facilmente a imensa cerca do fazendeiro conduzindo um saco entupido de galinhas, ao tempo em que o velho, morrendo de medo, acordava quase todos os seus vizinhos. – Acode, Maria. Acode Filismino, é o “lubisome” o diabo do bicho está dano no meu galinheiro. Volta ladrão dos “zinfernos”, devolva os meus frangos!
Década de 1950, Povoado do Porto de Santa Cruz, quando o Rio Pardo era a única opção de travessia entre o Sul e o Norte. Na época, uma imensa balsa feita de madeira e flandres era o único meio de transportar os veículos de um lado ao outro do rio. Não por acaso, o velho balseiro era Nenzim Fuçura, um caboclo popularíssimo. Extremamente talentoso, Nenzim acostumara a domar o ímpeto destruidor do rio para cruzar em segurança aquelas águas profundas. Tempo de movimento tão intenso que ele, sequer, podia fazer uma refeição decente, corria até o açougue de Justiniano e pedia para ferventar a fuçura de algum baé. O procedimento era feito ali mesmo na rua em um tonel de água fervente, a iguaria era degustada em uma cuia com farinha e sal, na proa da embarcação em movimento.
Nenzim, “lubisome” véi! – Gritava a meninada tirando o infeliz do sério. Nenzim ojerizava este apelido, já tinha, inclusive, sido acusado de ser o lobisomem ladrão de galinhas que aterrorizava o povoado. Os que tiveram seus poleiros invadidos em noite de lua cheia, queriam colocar a culpa em alguém e Nenzim era a bola da vez. Mas, para uma melhor compreensão voltemos aos anos 1980, quando eu me juntei à Wagner – ex-funcionário da agência local do Banco do Brasil -, Odenir Ferraz, José Bonifácio, Geraldo Sol (produtor cultural já falecido) e o músico Rosemberg Oliveira. Querendo conhecer melhor a história do “patrimônio histórico”, gravamos cinco horas de entrevista com Nenzim Fuçura e outros moradores. Diante das perguntas o que mais ouvíamos era a gargalhada banguela do velho:
– “Quiá, quiá, quiá”… – mostrava a boca desdentada debaixo de um bambuzal onde tomávamos umas brahmas e fazíamos a gravação. – “Quiá, quiá, quiá”… vou contar “prucêis” mas “iantes” bote aí uma talagada, ué! Saco vazio “num” fica de pé, né não meu “fí”? – Nezin era branco igual um sarará miolo, escondia a idade, embora tivesse mais de 80 anos. Os cabelos eram brancos igual um capucho de algodão e andava o dia “inteirizim” sem camisa, mostrando o engilhamento do tórax, revelado assim a sua velhice. O moço conversava pelos cotovelos: – E aí Nenzim, como foi o negócio da cobra? – Provocávamos. – “Quiá, quiá, quiá”… “Oia aqui “pra ancês vê”, eu “tô véi”, mas “num tô inda pra tê” cabeça branca não! – Falava sorrindo enquanto tirava o velho chapéu para que pudéssemos ver os seus cabelos brancos. – Isso, “mininos”, foi à cobra! – Diante da prosa do velho balseiro, perdíamos a noção do tempo. Dizia que em meados de 1906, com seis meses de idade sua mãe o colocou pelado no chão de terra batida da sua casa, quando sutilmente foi engolido por uma jiboia. Nazareno, o seu avô, deu por sua falta e ao procurá-lo encontrou no oitão da casa mais de dois metros de uma cobra empanzinada, com um barrigão de todo tamanho. Experiente, o avô deu um golpe de mão-de-pilão na cabeça da serpente que foi miolos pra tudo que foi lado. De posse de um velho canivete, o velho Nazareno abriu a barriga da jiboia e o retirou de dentro. A delata foi pouca, porém, embora saísse vivo, o garoto apodrecera toda a sua pele. Por oito dias, agonizou entre a vida e a morte, sobreviveu graças às garrafadas milagrosas do velho Amaro Raizeiro, o curador da região. Com dois anos de idade já tinha os cabelos brancos e a pele toda enrugada. Apesar de todo este transtorno, Nenzim até que teve uma infância feliz, vadiava muito, ia a escola (embora, nunca aprendera a escrever o próprio nome), fazia suas traquinagens e se divertia… porém, nas noites de lua cheia, como por encanto seus amiguinhos desapareciam, acreditando piamente que Nenzim era o lobisomem e saía na calada da noite degustando as galinhas do povoado.
Nos meados dos anos 1980, quando tivemos este privilégio, a lenda ainda reverberava pelas ruelas do Porto fazendo que muitos acreditassem. Esta fama fez que o infeliz carregasse esta cruz por um tempão. Chegou a ter a sua casa invadida na noite da sexta-feira santa pelos moradores do Porto liderados pelo Padre Anfilóphio, armados de tudo quanto há. Desde armas de fogo, até água benta e crucifixos. Felizmente não puderam comprovar a suspeita.
Mas, voltemos ao ano de 1950, quando os poleiros do vilarejo passaram a ser invadidos pelo “lobisomem” nas noites de lua cheia – Eu vi com estes olhos que a terra haverá de comer! – Testemunhava ainda trêmulo o véi Roxo, dono de uma pequena terrinha no entorno do povoado. – Quando eu meti o parabelo pra dentro, o medonho soltou um turrado, mostrou os dentões deste tamanho todo lambuzado de sangue e partiu em minha direção. Fiquei “inté” paralisado. Só “num” me “cumeu, “proquê” eu rezei o “crendeuspai” fazendo o bicho empacar “inguale” burro brabo, “mermo” assim inda levou um saco de estopa entupido até os beiços com as minhas galinhas. – Oxen, no escuro, como “ocê” conseguiu “inxergá” tudo isso? – Questionava Mané Barbeiro duvidando do que ouvia. – Escuro não “sinhô”, a lua estava lá, riscando o céu bem na hora que o “desinfeliz” roubou minhas galinhas! – reafirmava Seu Roxo. – Será que não é Nenzim Fuçura? “Lubisome” por estas bandas só tem ele. Vamos formar uma comitiva e forçá-lo a confessar que ele é o “lubisome”. – Propunha Mané Fredo que chegara da Pauliceia traçando tudo que era mulher do povoado, inclusive as casadas. Este caboclo era quem mais acusava Nenzim. – Né ele não. Estamos futucano a vida dele há mais de um ano e num “incontramo” nada. – Afirmava João Expedito. – O pior é que hoje vai ser noite de lua cheia. O bicho afanou seis poleiros ontem e hoje vai atacar de novo. – Dizia Saracura, dono do bar. – Ou “nóis” acaba cum este bicho, ou ele acaba com “nóis”. Quem tem coragem aí de ir atrás desde satanás? – perguntou Joaquim Barbeiro. – Êpa, não contem comigo. Minha religião é contra a violência. – Dizia Mané Fredo, o namorador do povoado. Entre tantos machões do Porto, apenas 5 moradores toparam a empreitada e correram para a igreja onde o Padre Anfilóphio traçou alguns planos, armou a comitiva, e se preparou para o embate. Assim que a noite caiu, saíram no encalço do Lobisomem. Anda aqui, para ali, futuca acolá e nada do bicho.
Mas ou menos meia-noite, depois de percorrerem os dois lados do povoado, o padre resolveu levar a comitiva para tomar um cafezinho na igreja, quando deu de cara com o “maledito”. – É ele, é ele, é o “lubisome”! – Gritou desassossegado Joaquim Barbeiro. O bicho à distância parecia ser enorme, trajava umas vestes de pele de bode e carneiro, levava um saco de estopa nas costas com uma renca de galinhas cacarejando e trazia no rosto uma cara de carneiro descarnada, com chifres retorcidos. – Mantenha a calma, filhos. – Sugeriu o padre. – Aponte as armas e esperem o meu comando! – Enquanto os homens apontavam as armas e tremiam de medo, o “bicho” corria para a frente da igreja e diante dos olhares estupefatos, passou a fazer uma renca de mungangas. Pulava, rodopiava, dava cabriolas, saltos mortais e diante do pavor da comitiva, se deitou e rolou na terra soltando um turrado medonho, acordando todo o lugarejo:
– Aaaaarrrrggggghhhhh! – Diante do turrado não teve valente que esperasse. Chorando igual uns dementes, sapecaram estas armas no chão, passaram sebo nas canelas e caíram na lapa do mundo. Quem puxou a fila foi o padre que levou a porta da igreja nos peitos, seguido de perto por Joaquim Barbeiro, Miguelinho Banguelo, João Expedito e João Saracura. Alguns, inclusive, fazendo as necessidades nas pernas. Sentindo fraqueza “o bicho” os perseguiu até a igreja, ao ver a pesada porta ser fechada com tramelas reforçadas, o “lobisomem” soltou as galinhas no meio da praça e rolou de rir. Enquanto zombava dos medrosos, não foi que surgiu um lobisomem de verdade na sua frente? Sim. E não foi um lobinho qualquer não. Foi um bitelo de um lobisomem que já chegou mostrando as garras.
– Que merda é essa? – Antes mesmo de obter a resposta já foi levando uma patada violenta que lhe rasgou da orelha até a barriga. Ao sentir que a coisa era séria, o infeliz desembestou com a fera atrás querendo lhe comer o fígado: – Me acode, me ajuda, é o lobisomem, ele quer me comer! – Todo mundo ouviu os gritos, mas quem seria realmente o lobisomem? O que corria na frente ou o que corria atrás? No desespero, o ladrão de galinhas fez a única coisa que podia naquele momento, escalou a cruz fincada na porta da igreja em uma ligeireza de meter medo. Subiu e já foi jogando fora a cabeça de carneiro de chifre retorcidos que usava como máscara e todo cagado, botou a boca no mundo. – Tira este bicho daqui, eu sou o “lubisome do puleiro”, esse “lubisome” é de verdade, ele está querendo me cumer, me ajude pelo amor de Deus. – Quem se atreveria a ajudá-lo? A sorte foi que a lua cheia ampliou a sombra da cruz e o lobisomem, por temor ao símbolo sagrado, se afastou para as sombras, embora ficasse rosnando, doido para comer o fígado do infeliz. Assim que dia amanheceu, os moradores foram saindo desconfiados, um a um e toparam com Mané Fredo, todo cagado, trepado no topo da cruz, chorando copiosamente, vestido com as peles de bode, com a cabeça de carneiro jogada no pé da cruz e confessando a pleno pulmões que era ele quem fingia ser o Lobisomem, apenas para roubar as galinhas que eram vendidas nas feiras da região. Só não contava com o surgimento de um lobisomem de verdade. O bicho fez um estrago na orelha do infeliz. À distância, na porta da sua casa, Nenzim Fuçura sorria feliz, a justiça tardou, mas não falhou. Depois desta, Mané Fredo ficou meio aluado e voltou para a pauliceia no primeiro Vera Cruz que encontrou pela frente.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Setembro, Crescente de Primavera.