O infiltrado
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O infiltrado

 Luiz Henrique Borges

Eu leciono há duas décadas e durante todos esses anos me identifiquei fortemente com diversos alunos. Acho que não sou um professor muito ruim, afinal, de tempos em tempos, recebo mensagens de amizade e de reconhecimento pelo trabalho realizado. Curiosamente, eu não tive filhos biológicos, mas acabei ganhando, de empréstimo, duas “paternidades”.  Dois ex-alunos, que eu chamava de “filhões”, passaram realmente a me ver como uma figura paterna ao ponto deles me enviarem mensagens no último domingo, que foi o dia dos pais. Além disso, ao longo do ano, em diversos momentos, eles me pedem conselhos, opiniões, etc. Enfim, se não são meus filhos biológicos, o Guilherme e o Zé Henrique, são filhos de coração.

Estou fazendo todo esse preâmbulo para contar a experiência desta semana. Ainda no final do ano passado, o Guilherme, flamenguista, o que para mim é o grande defeito desse meu “filho”, me falou que tinha uma vontade enorme de ir ao Maracanã para assistir uma partida do seu time do coração, o Flamengo, mas como ele nunca havia ido, ele me perguntou se eu poderia acompanhá-lo. Pensamos em ir em uma das partidas do Campeonato Carioca, mas não foi possível adequar as datas. Há aproximadamente um mês atrás, ele me avisou, logo após o Flamengo derrotar o Grêmio em Porto Alegre, que conseguiu comprar dois ingressos para a partida que seria disputada no Rio de Janeiro no dia 16 de agosto. Como eu estaria de férias e era do conhecimento desse “pérfido filho”, ele sabia que eu não poderia negar o convite. E o leitor desavisado pode se perguntar: Por que ele foi pérfido? Porque o maroto sabe, de cor e salteado, que eu sou botafoguense.

Sem muitas alternativas, aceitei a proposta. Vou deixar de “prosa ruim” e vou confessar, eu fiquei muito feliz, afinal seria uma oportunidade de retornar ao Rio de Janeiro e de assistir uma semifinal de Copa do Brasil. Eu adoro futebol, gosto de um bom jogo, de ir ao estádio, de sentir a vibração da torcida, do cheiro da grama que é molhada minutos antes do jogo, de ouvir o zunido que a bola, quando bem tocada, produz no gramado, por isso já assisti e assisto diversos jogos em que o Botafogo não está atuando. O alvinegro é a cereja do bolo, é o detalhe que falta em outros confrontos, ele deixa tudo ainda mais bonito, mais vibrante, com a sua imortal estrela, mas, mesmo sem a sua luz, sem o seu brilho, eu gosto de futebol!

Infelizmente, o sol resolveu se recolher durante nossa passagem pela Cidade Maravilhosa. Na terça-feira, chegou a chover e, quando fomos buscar os ingressos na Barra da Tijuca, soprava um vento frio que tentou, inutilmente, nos afastar da orla e de uma farta travessa de camarões fritos. A quarta-feira também amanheceu meio sem graça. Ainda demos uma volta no calçadão de Copacabana, mas o dia nublado nos levou para um passeio que eu aconselho a todos que apreciam o futebol, o tour pelo Maracanã. O valor cobrado não é barato, aproximadamente R$ 65,00 por pessoa, o acervo também não é espetacular, mas a possibilidade de entrar nos vestiários dos jogadores, passar pelo túnel que leva ao campo, o mesmo que os jogadores iriam atravessar horas depois, pisar na área técnica, ocupar um dos assentos do banco de reservas e subir para uma das coloridas cadeiras que substituíram as duras, mas mais democráticas, arquibancadas de concreto, não tem preço para quem é um amante desse esporte. Um amigo, ao ver minhas postagens, chegou a dizer que há estádios melhores que o Maracanã, sou obrigado a concordar com a afirmação, no entanto, o Maracanã não é apenas um estádio, ele é um TEMPLO!

Após a visita, pegamos o metrô e desembarcamos para almoçar no Pavão Azul, um boteco, um daqueles “copos sujos”, que te servem uma comida inigualável. Retornarmos ao hotel para um merecido e breve descanso. Às 17 horas, com os ingressos nas mãos, voltamos ao metrô, agora lotado de trabalhadores retornando aos seus lares, até a estação Maracanã. Uma hora depois estávamos no início da fila que dava acesso ao setor leste inferior do estádio. Às 18h30, em ponto, entramos, com três horas de antecedência, naquele monumento de concreto que guarda em suas entranhas a emoção de milhões e milhões de torcedores que por ali passaram e viram os dribles de Garrincha, os gols de Pelé, as faltas milimetricamente cobradas por Zico ou Roberto, os arranques mortais de Romário, enfim, o desfile de gênios do futebol mundial.

O estádio ainda estava vazio. Aos poucos ele foi enchendo, ganhando vida, sons, cheiros, sensações, enfim, ele foi se colorindo de vermelho e preto. Em um cantinho, no alto, era possível ver uma outra mancha, azul, branca e preta, se formando. Ela bem que tentou, antes do início do jogo, se fazer presente, mas a multidão rubro-negra não deu a menor chance para que ela se manifestasse. Antes mesmo da bola rolar, a torcida já cantava e incentivava o clube. Sabendo que precisaria apoiar o confuso time de Sampaoli, ela guardou, sabiamente, o fôlego, para os 90 minutos. Ao apito inicial, embalada pela festa da entrada do time do gramado, ela ficou totalmente ensandecida. Os torcedores cantaram, vibraram e empurraram o Flamengo durante todo o tempo. Quando um dos setores reduzia o tom, algum outro tomava, imediatamente, o seu lugar e o som era tão alto que parecia que uma potente aparelhagem de som havia sido ligada na tomada. E a massa rubro-negro voltava a incendiar.

Mesmo nos momentos mais tensos e difíceis do jogo, a torcida não reduziu o seu ímpeto. Tenho a mais absoluta certeza que, no início do segundo tempo, a bola chutada pelo Grêmio, aquela que acertou a trave, foi desviada, ao vê-la partir em direção ao gol flamenguista, por uma força invisível que partiu do olhar tenso, ansioso e até desesperado dos torcedores. O suspiro de alívio foi ouvido em todo o Rio de Janeiro e redondezas.

Minutos depois do susto, a ida do árbitro em direção ao VAR acendeu o pavio que terminou em uma enorme explosão de alegria quando Arrascaeta balançou as redes após a cobrança da penalidade. Após sofrer o gol, o Grêmio sucumbiu. Percebendo o adversário combalido, o Flamengo, apesar de ter criado algumas jogadas de perigo, procurou tocar a bola e aguardar o apito final do juiz.

O Guilherme, em sua primeira visita ao Maracanã, ficou encantado. Ele pulou, gritou, xingou, gravou, tirou foto, cantou, vibrou, em suma, agiu como um torcedor apaixonado, como eu sei que ele é. No retorno para o hotel, no metrô, ele e outras centenas de flamenguistas testaram a durabilidade do nosso vagão, cantando, pulando e batucando no teto. Apesar do seu esgotamento, a alegria e o encantamento com a torcida era de tal monta que ele teve dificuldade em conciliar o sono e prometia voltar outras vezes. Da minha parte, infiltrado no estádio, me passei por flamenguista, mas o disfarce ficou incompleto. Meu “filho” Guilherme levou uma camisa do Flamengo para eu usar e eu até pensei em vesti-la. No entanto, não tive coragem de macular o meu amor e o meu corpo botafoguense. Era demais para mim! Nem os “filhos”, legítimos ou ilegítimos, merecem tal prova de amor.