Na década de 1950 o povoado do Porto era chamado de Santa Cruz do Santo Porto e era composta por pequenos hotéis, dormitórios, “bodega”, vendas, cabarés e até feira livre. Guardadas as devidas proporções, o lugarejo era bem parecido com uma cidadezinha. Todos os dias uma leva de pessoas chegavam por aquelas bandas, quase todos buscando uma vida melhor. João Justino e a esposa Marocas das Dores vieram “decretamente” da Vila dos Montes Claros apenas para se aventurarem como açougueiros. Em pouco tempo eram os maiores comerciantes da localidade, vendiam desde galinhas vivas (penduradas de ponta cabeça), até fardos de carnes de jabá entrelaçados a mantas de surubim salgado, tonéis de banha de porco e tatus-pebas moqueados. Dona Maroca era especialista em castramento de barrão e perita em abatimento de gado à marretada. Além de trabalharem feito o diabo, o casal chamava a atenção por ser extremamente sovina. A dupla era tão pão-duro que metia medo! Negava até copo de água. Quando um pedinte ou outro aparecia na porta do açougue eram enxotados na base do cabo de vassoura:
– Vai trabalhar vagabundo! Arrume alguma coisa pra fazer, “esmolé” do diabo! – Enquanto dona Maroca cuidava do açougue, João Justino sonhava em ficar rico, assim, diariamente tirava boa parte do “apurado” para investir na sua lavra. Ralava dia e noite escavando a procura de um veio de rubi que parecia fugir às léguas da sua ambição. Era comum vê-lo bebendo desolado à custa dos outros – se especializara também na arte de serrar dos amigos –, arrotando que estava perseguindo um veio de pedras preciosas e que em muito pouco tempo estaria podre de rico.
– Vocês haverão de ver com estes mesmos olhos que a terra haverá de comer! Vou ficar rico e virar caixeiro-viajante por este sertão de meu Deus! – Impressionado com o minério (todo santo dia), João Justino se levantava com o cantar do galo e só voltava quando a noite começava “a comer as fraldas do dia”. Este era o cotidiano do velho minerador.
Neste tempo uma renca de livusias assombrava o lugarejo. “O bicho da Fortaleza, A Mula-sem-cabeça, A Noiva da Igreja e o Velho do lenço” tocavam terror na região. Uma noite, cansado em demasia e “imbirrado” com dona Maroca, João Avarento deu uma bistunta e resolveu dormir sozinho nos quartos dos fundos, acordou sobressaltado com uma pequena luz encadeando a porta do quarto. Assustado, sentou-se na cama arreganhando os olhos para ver melhor o que se passava na escuridão, quando deu de testa com um velho moribundo. O velho era feio igual à dor de parir e se movia silenciosamente pelo recinto, tremendo mais que galinha de gôgo, munido de uma velha candeia que lhe iluminava o rosto completamente deformado, cujos pedaços eram amarrados por um lenço sujo de uma ponta a outra da sua cabeça, segurando o queixo dilacerado, fazendo que a língua escorresse boca afora, expelindo uma pegajosa baba enquanto os olhos butucados eram pendurados por veias lambuzadas de sangue. Ao ver o defunto, João Avarento até que tentou correr e lhe faltaram pernas, tentou gritar e falhou-lhe a voz, com o peito alucinado pelos baticuns apavorados do seu velho coração, quase que se enfartou. Suando frio, encostou-se a parede e testemunhou boquiaberto o esforço que a visagem fazia para falar, sibilando igual uma jiboia. Na hora, João percebeu que estava diante do famoso Velho do Lenço, morrendo de medo, a única coisa que conseguiu – além de se mijar todinho – foi gritar:
– Faço que o que ocê quisé, mas pô favô, num mim meta medo! Eu não suporto visagem! Morro de medo d’ocêis. Fala o que cê qué e cape o gato daqui! Não me amedronte moço, em nome de Deus! Eu tenho medo d’ocêis! Fala logo o que ocê qué, fala, em nome de Deus todo poderoso!
– Ssssssssiga o veio… O rrrrrrrubi… Ocê vai ficá rico… Pôdi de rico! Vai ficá milionário! As pedras vão lhe dexá rico… Basta seguir o veio…
– O que? Não estou compreendendo nada, fala mais alto! – Gritava o desesperado mineiro enquanto o “Velho do Lenço” dizia apenas palavras ininteligíveis. Não se sabe como, o mão-de-vaca conseguiu entender onde literalmente estava o “mapa da mina”. A horripilante visagem, feia e mutilada, revelou tudo que João Avarento sonhava em saber: Lugar onde deveria cavar, que caminho seguir, que investimento fazer e, o mais importante… A alma penada exigia que parte das pedras fosse doada para as obras da igreja que estava sendo construída lá no alto da serra. Depois de meia hora sibilando, a visagem deu um pipoco e desapareceu bem debaixo do nariz de João Avarento, o deixando completamente abilolado.
Na cabeça do “unha-de-fome” ainda ressonava as últimas palavras do defunto: – Não se esqueça de ajudar a igreja, ouviu? A Igreja! Ajude a construir a igreja! – Quem disse que o velho garimpeiro conseguiu dormir o resto da noite? Não pregou o olho! Aproveitou para juntar as suas tralhas, arriou suas mulas e antes mesmo das quatro da manhã já tinha acordado a esposa, informando que havia sonhado com uma enorme jazida de rubi e que partiria naquele momento, não podia perder tempo. Mesmo diante do olhar de reprovação da esposa, o lavrista apeou esta mula e caiu na lapa do mundo. Avarento trabalhou feito um demente de dia e de noite por seis longos meses… Por medo de dividir a riqueza, demitiu unilateralmente seus ajudantes e meteu os ferros pra dentro até encontrar o famoso veio de Rubi. Empolgado, tirou logo um pedaço que dava mais ou menos um quilo e rumou para a Vila da Fortaleza (que viraria posteriormente a cidade de Pedra Azul – MG) onde consultou um especialista que confirmou a autenticidade da descoberta. Ciente que estava podre de rico, o ganancioso não disse nada pra ninguém – muito menos para a sua querida esposa que o ajudara por toda a sua vida – e na calada da noite coletou tudo o que pudesse ser transportado no lombo de três fortes mulas e fugiu em meio à madrugada, deixando tudo para trás, inclusive, dona Maroca, que ralara noite e dia no açougue para ajudá-lo.
De posse do rubi, o sovina relutou sobre a quantia que doaria para a construção da igreja do Porto, porém, ao separar meia dúzia de pequenas pedras, pensou direitinho e achou melhor fugir sem dar a contribuição prometida, afinal de contas o Velho do Lenço não iria dar por fé se ele havia ou não dado à parte prometida. Quando a notícia da fuga do lavreiro chegou aos ouvidos dos moradores do Povoado, foi um fuzuê! A pobre da dona Maroca foi acometida de uma síncope e só não esticou as canelas de vez porque o farmacêutico Sebastião lhe aplicou uma renca de injeções evitando que ela batesse as botas. Enquanto o povoado fervia em fofocas, João Avarento fincava as esporas no vazio das mulas e rompia grotescamente o causticante sertão do Norte de Minas.
Três dias de viagem depois, o velho garimpeiro adentrou o pequeno povoado de Ninheira. Diante de um cocho de água que existia na rua principal, apeou do animal e correu em direção ao primeiro boteco que avistou. Entrou, pediu uma cabaça de água fresca e após solvê-la em um gole, tomou duas talagadas “encarreadas” de cajebrina, em seguida comeu em uma gulodice feroz uma tora de linguiça frita com pimenta de cheiro. Quando abriu o alforje para pagar com as pequenas pedras de rubi se surpreendeu com a quantidade de areia cristalina que tinha no alforje!
– Ué! Que lambança é essa? Cadê minhas pedras? Fui roubado? Fui roubado! Alguém me roubou! – Desesperado correu em direção às mulas e após abrir as seis bruacas que existiam nos seus lombos, constatou que em todas elas (sem exceção) havia o mesmo tipo de areia cristalina com resíduos azuis da mesma cor da pedra. Ao perceber que toda a sua riqueza tinha ido pelo ralo, João Avarento ajoelhou-se bem no centro do povoado e berrou com todas as suas forças… O grito desesperado ecoou por todo o vale metendo medo em quem assistia. Atordoado, o avarento soltou os animais, tirou as roupas e somente de cuecas entrou correndo mata adentro, deixando a população atônita. O lavreiro sovina enlouqueceu de vez e vagou como mendigo sem destino por dois anos, errando pelo escaldante sertão mineiro. De quando em vez alguém o via. Após todo este tempo o caboclo não deu de aparecer no povoado em um fatídico dia de feira? Pois é. Não sabia por que, mas fora impelido em direção àquele estranho lugar. Durante o tempo em que vagara pelo sertão, o povoado de Santa Cruz do Santo Porto prosperara. O comercio cresceu, novas moradias foram construídas, novos comerciantes chegaram e dona Maroca, depois de secar as lágrimas chorando a ausência do marido fujão, deu uma bistunta e resolveu se esquecer de vez do canalha, matrimoniando-se com Sebastião da Farmácia, o farmacêutico que além de salvar a sua vida, apaixonara-se perdidamente por ela.
Mais ou menos meio dia, no auge do movimento da feira que acontecia na porta da igreja recém-construída, aquele fervilhamento todo de camelôs, propagandistas de elixir e uma infinidade de barracas disputando a preferencia do freguês… Adentra calmamente o povoado, aquele doido, maltrapilho, dentes cariados, sujo, fedorento, com os pés feridos, as mãos calejadas, barbudo, cabeludo, cheio de piolhos, conduzindo suas tralhas na cacunda incomodando os feirantes. Magro feito um cipó, o outrora comerciante e lavrista João Justino ficara irreconhecível! Caminhava em meio à feira estendendo a mão para os barraqueiros:
– Uma esmolinha pelo amor de Deus! – Dentro da sua loucura esquecera completamente o que fora. Assim, com os olhos esbugalhados e com uma espessa barba retendo a baba fétida, parou bem em frente ao açougue que havia lhe pertencido e ao estender a mão, ouviu uma frase que conhecia bem:
– Vai trabalhar vagabundo, esmolé preguiçoso! – A frase trouxe imediatamente de volta a memória perdida de João, que após fitar incrédulo, a mulher que um dia fora a sua esposa, jogou suas tralhas no chão, correu desesperado para a porta da igreja, abraçou-se fortemente à cruz e chorou feito uma criança. Do lado, dançando cheio de mungangas, só ele conseguia ver o Velho do Lenço, rindo sarcasticamente da sua miséria! Nada vem de graça, avareza tem preço!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Poeta e Escritor
Cândido Sales, BA. Quadra de Junho de 2023, Minguante de Inverno.