O FAMOSO DÃO BRAÚNA
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O FAMOSO DÃO BRAÚNA

O coronel Januário D’Onofre foi um dos homens mais ricos e valentes dessa região. Ali pelos meados dos anos 1967, as suas terras iam até onde as vistas podiam alcançar. Criador de porcos, perus, pavões, galinhas e gado, o velho já tinha perdido até a conta de quanta riqueza possuía.  Nas suas terras, no município de Encruzilhada, era considerado o mais rico dos fazendeiros. Valente feito um cascavel, o “véi Januário” não corria de cara feia, tanto que quase toda semana acabavam as feiras da região na base do cacete. Não tava nem aí se fosse Nova Conquista, Encruzilhada, Cajazeiras ou o povoado de “Sossiveno”, se provocado, fundava dentro, não tinha o hábito de levar desaforo para casa.  O velho era tão “afamado” que dizia já ter matado quase que meia dúzia de suçuaranas usando para isso apenas o seu famoso facão corneta de doze polegadas.

Neste mesmo período, extremando com a sua terra, vivia o malandro e pra lá de esperto, Dão Braúna. Um negão de todo tamanho, magro feito um tuberculoso, serelepe feito um agiota e mais alto que pé de eucalipto.  Dão era um dos raros descendentes dos quilombolas do sul da Bahia e sabe Deus como, veio dar por estas bandas. Usava sempre a mesma calça meio-coronha, barba por fazer, camisa aberta (faltando alguns botões), o dorso velho e esquálido com em sua excessiva magreza revelava a barriga colada no espinhaço junto a aquela renca de costelas. Não se sabe como, apropriou-se de alguns alqueires de terra alheia e construiu o seu casebre. Não plantava absolutamente nada na sua terra, embora, comesse diariamente o que existia de bom e do melhor.

Formado na “arte da malandragem”, Braúna saía em dia de feira sem um níquel no bolso e voltava empanturrado de mantimentos sem gastar uma “nica”. A tática do malandro era simples, ao ver uma roda de roceiros em alguma barraca, já chegava gritando:  – Olha o facão! – simulava uma luta de facão com os braços com uns dois ou três companheiros. Pulava, saltava, rodopiava, sorria… Assim que parava, abria um vasto repertório de loas e causos, deixando os matutos tontos de tanto rir! Ao sair, Dão trocava propositalmente o seu saco de estopa cheio de ossos velhos por algum que contivesse uma farta feira! Rezava a lenda que ele tinha um pacto tenebroso com o famoso “capetinha da garrafa”! Quando tinha treze anos, caiu em uma fossa e só sobreviveu porque na ânsia da morte, fechou uma combinação com o Tinhoso. Foi retirado do buraco completamente muchilado, bastaram dois dias para o moço já estar subindo em árvores e pulando cercas em uma recuperação inacreditável. As más línguas diziam que a contrapartida foi ele ser obrigado a chocar debaixo do sovaco esquerdo, um ovo posto por um galo preto em noite de lua cheia, originando-se assim, um diabinho deste tamanhinho que ele criava com todo zelo e carinho dentro de uma garrafa com álcool “canforado”. O passatempo predileto do malandro era “pescar galinhas” no quintal do coronel. Colocava um caroço de milho em um anzol atado a uma linha de pipa e com uma vara de marmelo jogava com maestria a isca dentro do poleiro do vizinho. Quando a “penosa” mordia a isca, a vara de marmelo dobrava e a forte linha trazia a galinha até os braços de Dão, que, com uma perícia invejável, quebrava o pescoço da pobre coitada antes mesmo que tivesse tempo de cacarejar.  Certa feita, ao tentar pescar uma galinha do coronel, Dão Braúna acabou pescando por engano o seu galo de estimação. E olhe que Jaconias não era um galo qualquer, não. Era o rei do terreiro! Galo de raça, valente feito o diabo e muito admirado! No dia que ele amanhecia invocado, forçava as galinhas a fazerem fila para serem traçadas. O coronel Onofre gostava tanto de Jaconias que dizia não existir dinheiro no mundo que pudesse comprá-lo! Após o sumiço do pai do terreiro, Dão Braúna foi subitamente acordado pelos murros violentos dados na sua porta pelo furioso coronel:

– A que devo a honra desta visita, meu “coroné”?

– Cadê o meu galo, Jaconias? – perguntou um ofegante coronel, vermelho igual pimentão, usando o seu impecável terno branco, suas botas negras que iam até os joelhos e o seu famoso chapéu panamá!

– Ué, eu lá “vô sabê”! – O coronel estava tão irritado que chegava a espumar os cantos da boca.  – Óia, “cabra”, num pense que me engana não, viu? Meu galo sumiu! Se você roubou eu vou comer o seu figo ferventado com pimenta malagueta! – “Ancê” me “arrespeita, coroné”? O senhor aparece aqui na minha propriedade uma hora destas, me acusando de afanar o galo Jaconias, bicho que conheço desde que era pintinho e que tenho uma grande estima e consideração? Que falta de respeito é essa? – Astuto em demasia, Dão lhe passou uma descompostura tão violenta que o coronel mal acertou a saída! A saudade de Jaconias fez que o coronel ficasse acamado por quinze dias com uma febre altíssima. Alguns catimbós depois, uns banhos de cheiro e algumas garrafadas fez que o velho recuperasse a saúde. Uma semana depois, D’Onofre descobriu um buraco repleto de penas e ossos do falecido bem no quintal do seu desafeto. Por azar de Dão Braúna, a cachorra Bastiana que pertencia à sua vizinha Dodinha de Antenor, deu uma bistunta e, ao farejar os ossos do finado, acabou revelando a cova feita por Dão, jogando por terra todo aquele segredo.  Ah, menino! Quando o coronel viu aquilo, pegou um pilunga e quebrou tudo o que tinha dentro do casebre do negro. Tudo, neste caso, é força de expressão! O negro tinha em casa apenas uma cama de vara, um fogão de lenha – muito do mal acabado –, dois potes pequenos, uma velha moringa, duas cabaças penduradas na parede e uma meia dúzia de panelas de barro.  Por sorte, o coronel não viu a garrafa de álcool alcanforado com o diabinho dentro, debaixo da sua velha cama de varas. Aliás, as más línguas dizem que foi o diabinho que envultou Dão quando o coronel adentrou o seu casebre.  Deste dia em diante, sempre que o coronel tomava umas “conenas”, ficava furioso, “butucava os zóios” e ridicularizava até a décima geração da família de Braúna.

– Quando eu encontrar aquele “nego” “felá” de uma égua, “vô inchê” a boca dele de bala que ele vai “ficá” mais furado que “táuba” de pirulito! – Quem conhecia o coronel sabia muito bem que o homem cumpria o que prometia. O cara atirava mais que artista de filme italiano, era mais bravo que os personagens dos discos de Leo Canhoto e Robertinho e mais famoso que Waldick Soriano. E, à medida que o tempo ia passando, a raiva do coronel por Dão só ia aumentando. Neste ínterim, haviam se encontrado mais de dez vezes, só que sempre que o coronel cruzava o seu caminho, Dão, automaticamente se “envultava” virando um toco, uma pedra, um cachorro, uma galinha ficando imóvel na beira da estrada esperando o coronel seguir viagem, chegando a ponto de o coronel urinar sem perceber que aquele toco que ele mijava era o seu desafeto.  Eis que em um dia de feira em que nada deu certo para o negão – a fama de marreteiro caíra na boca do povo –, ele se viu obrigado a encher a cara, e quando voltava à noite, cambaleando com as calças caindo, deu de frente com o velho Januário montado no seu alazão branco. Menino, quando os olhos do coronel enxergaram aqueles quase dois metros de negro, bêbado feito um gambá, tropicando nas próprias pernas, o velho endoidou de vez, pulou deste cavalo, sacou o seu parabélum e com os olhos quase que pulando fora das pálpebras descarregou todinho, à queima-roupa, em cima de Dão.  – Morra féla de uma égua! – Foram seis tiros dados com raiva… Cada bala que explodia no peito de Braúna o fazia recuar dois passos enquanto o coronel apertava o gatilho e seguia em frente, chegando ao ponto de um ficar cara a cara com o outro. Depois dos seis tiros, o velho apertou o gatilho mais umas duas ou três vezes e as balas tinham se acabado. Olhou e lá estava o negão, de pé, sorrindo para ele…

– Mas que porra é essa? – Perguntou para si um incrédulo coronel. Apesar dos tiros à queima-roupa, Dão continuava na sua frente como se nada tivesse acontecido, o olhando de soslaio… Rindo, meteu a mão na algibeira, tirou as seis balas (todas mochiladas) e mostrou, zombando do fazendeiro.

– Está querendo me matar com esses chumbinhos de caçar caga-sebo, macho véi? – É bom que se diga que o negro que parecia morto de bêbado (sem trocadilhos), de uma hora para outra pareceu estar possuído, e com uma ferocidade inenarrável, sacou o seu facão enferrujado e desembestou em direção ao coronel D’Onofre. Quem testemunhou ri até hoje, quando o negão partiu, o Coronel deu meia volta e tentou fugir. Imagine um homem de quase cem quilos, metido a valentão correndo desesperado na frente do negão furioso, armado com um facão de todo tamanho?  Até aquele dia o coronel D’Onofre jamais tinha fugido de uma peleja, e olha que já tinha digladiado com uma dúzia de onças e com uma renca de valentões, porém, quando ele viu Dão Braúna desembestada na sua direção com aquela aparência de “retalhador de toucinho”, não resistiu e deu no pé, tentando alcançar às pressas o seu alazão que sentindo o perigo, fugiu no exato instante em que o Coronel tentava montá-lo o fazendo estatelar de cara no chão, ficando à mercê do facão do “criollo”. Até que Dão Braúna foi econômico na pêa que deu no coronel. Foi só uma dúzia de lapadas, deixando as costas do coronel com cada vinco que metia medo. Só de pirraça ainda levou o lóbulo da orelha esquerda do velho apenas para ficar ostentando nos bares da vida.

A partir deste dia a tão decantada valentia do Coronel Onofre virou piada na região e a lembrança que ficou na memória afetiva dos que testemunharam o sucedido, foi a do velho correndo apavorado na frente do desengonçado negão lhe descendo a ripa. As testemunhas juram de mãos juntas até hoje, que enquanto Dão Braúna surrava o coronel, o capetinha da garrafa, deste tamanhinho, corria atrás com as suas perninhas diminutas em um barulho “disgramado”, fazendo um monte de mungangas, pulando, rodopiando, dando cambalhotas, jogando capoeira e gargalhando de prazer, feliz da vida!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Poeta e Escritor

CSales, Inverno, Quadras de Junho de 20232. Lua Nova.