Em 1965, o Vilarejo de Nova Conquista estava engatinhando, nesta época seu Antônio da Silva Brandão, um próspero comerciante da cidade de Fortaleza (viraria posteriormente a cidade de Pedra Azul) lá no Vale do Jequitinhonha, nos Gerais, cansado da vida que levava como caixeiro-viajante, juntou as tralhas, vendeu o pouco que tinha e trouxe a família inteira para tentar a sorte no recém-formado povoado. Ao chegar neste torrão, o velho senhor passou a desenvolver o ofício de comerciante enquanto seus filhos buscavam o “pão nosso de cada dia”, todos se aventurando às margens da BR-116 – rodagem famosíssima por estar ligando o Sul ao Norte do país! Já com alguma experiência o primogênito passou a desenvolver o ofício de motorista de ônibus, enquanto os outros aventuravam-se como balconista e atendente na lanchonete do Posto Texaco de Zé do Óculos.
Entre estes irmãos existia um caboclinho de 13 anos de idade, hiperativo, danado feito a peste, malino que só o capeta, mais reliento que macaco-prego e todo metido a sabido. O moleque não conseguia ficar quieto, por um minuto, sequer. Fisicamente o moço era cagado e cuspido um índio asteca, cabelos negros espetados, feições achaparradas, andar todo “amalandrado” e “conversadorzim” feito a Nega do Leite. Por motivos óbvios, diante daquela selva de asfalto e concreto, desde muito pequeno teve que aprender a arte da sobrevivência em meio daquela renca de malandros, assim, raramente se deixava enganar, ao contrário, se alguém piscasse ele passava a perna, era marreteiro que fazia dó. Inquieto, mostrava ser de uma crueldade indescritível, tanto que um dos seus principais divertimentos era sair amarrando bombas nos rabos dos cachorros, eslingando gatos, soltando sapos ensacados para saírem sofregamente pulando pelas ruas do lugarejo e brigando a torto e a direito com quem o desafiava. Diante dos sucedidos, Zequinha, logo foi apelido de Zé da Gata, quando levou uma sova de um felino ciumento que não aceitou que ele bulisse com a sua gata angorá. O jovem ficou mais arranhado que Totonho de Izaura, quando levava uma pisa da sua esposa pra lá de ciumenta.
Apesar de respeitado naquele meio de marreteiros e espertalhões, ele sabia que a “precisão” o moldara na arte da “sobrevivência” e mesmo com a pouca idade, já sabia o que realmente queria pra sua vida… o seu futuro seria ser chofer de caminhão, como o seu irmão mais velho. Enquanto este dia não chegava, o caboclinho saía pelas ruas vendendo cocadas, pamonhas, biscoitos, arroz doce, refresco, milho assado (ou cozido), brevidade, arroz doce, mungunzá, pirulitos, doce de leite e tudo que pudesse gerar algum dinheirinho. Como era esperto, ganhava muito mais que os donos dos produtos que ele vendia.
Mesmo trabalhando feito um louco, Zeca achava um tempinho para ir até “o corte” todo santo dia (que era uma espécie de cânion que dava acesso ao vilarejo. A rodagem BR-116 passava dentro do povoado através deste vale, rasgando o lugarejo ao meio), parte do povoado localizava-se acima deste corte – daí a origem do nome. Os meninos ficavam horas observando os motoristas conduzirem aquela renca de veículos coloridos e diversificados. Zequinha tinha o sonho secreto de um dia entrar em uma daquelas boleias imensas, colocar o pé na embreagem do caminhão, engatar a primeira, a segunda, a terceira marcha e sair de pé em embaixo pelas longas estradas da vida. Só que os donos dos veículos, ciumavam mais dos carro que das esposas. Assim, Zeca tinha que se contentar em observar à distância os jeitos e trejeitos de um motorista em plena atividade. Na solidão do quintal da sua casa, ele ficava horas imitando os movimentos de um chofer conduzindo um veículo. Um dia seria ele a estar ali, detrás do volante, engatando uma marcha atrás da outra e seguindo mundo afora, sem pressa e sem destino.
Pois é… Rio-Bahia (BR-116) recém-inaugurada, uma renca de Jipes, Simca Chambord, Rurais Willis e caminhões Ford F-600 novinhos em folha, transitando diante da “onisciente” presença do velho Alpha Romeo, o (FNM) lento feito uma tartaruga gagá, com o seu tamanho descomunal – um absurdo para a época. Rodovia nova, dá pra imaginar o movimento de veículos. O tráfego era tão intenso que a meninada reunida passava um tempão contando os carros, e se divertindo:
– Olá o tamanho daquele carrão! – Dizia um. – O bicho é maior que um elefante, não é? Esse aí é o pai de todos! – Diziam se referindo ao FNM.
– Olá a baratinha! – Falava se referido ao fusquinha. – Oia o tamanhinho dela, é “pirroxotinha”, Tadinha da bichinha!
– Os pequenos são meus e os grandes são seus. Vamos apostar meia dúzia de laranjas para ver quem completa 10 carros primeiro?
E assim, seguia a vidinha aqui em nosso torrão. Com a imensidão de carros trafegando diariamente, fez se necessária a presença diária dos policiais-rodoviários (que vinham de Conquista para cá) visando a manutenção da lei e da ordem. Assim, passou a dar por estas bandas, todo santo dia, uma dupla de policiais-rodoviários mais paramentados que astronautas americanos. Fardas reluzentes, cassetetes, capacetes, coturnos, currião envelopado com balas e um colt de todo tamanho pendurado no coldre. Para incrementar ainda mais a “demarcação do território” – mostrando quem verdadeiramente era a lei ali -, os caras ainda usavam uns óculos escuros que fazia a mulherada ficar pra lá de derretida pros lados deles.
Chegavam em Nova Conquista à bordo de uma vistosa rural pra lá de chamativa, pintada de azul e amarelo… travestida de viatura. Quando estes moços adentrava o povoado com a sirene da rural fazendo aquele barulhão a meninada fazia a festa correndo atrás, seguindo o veículo pelas ruas do povoado – que na verdade se resumia à uma ou duas, no máximo. Fizesse sol ou chuva, todos os dias aconteciam o mesmo ritual. Os policiais-rodoviários adentravam o povoado com a sirene ligada, rodava pelas ruas (perseguidos pela molecada) para em seguida descerem no Posto (Restaurante e Lanchonete) de Zé do Óculos com os peitos estufados (parecendo até artistas de filme americano) e assim que desciam da viatura ostentando os seus vistosos revólveres, eram tão bem tratados que ficavam até constrangidos. Comiam e bebiam o que ali havia de melhor e o dono se recusava a receber a conta. Como podem ver, não é de hoje que o “toma lá, dá cá” existe!
Após o desjejum, as autoridades estacionava a viatura ao lado da pista e ficava o dia inteirinho multando, xingando, prendendo, batendo e dando esporros em quem infligiam às regras do trânsito. Enquanto metade do povoado rasgava seda para os policiais, Zeca, astuto como era, arrumou logo foi um jeitinho de ficar íntimo dos “pseudo-heróis”. Assim, quando os “canas” pensavam em beber água, quem chegava já trazendo uma moringa de água geladinha? Zequinha, claro. Buscava um refrigerante pra um, um cafezinho com um palito de cigarro para o outro, e logo já estava na boleia da viatura “assessorando” os policiais enquanto perseguia um ou outro infrator, como, por exemplo, no dia em que dois ladrões roubaram um fusquinha em Vitória da Conquista e, ao chegar aqui, foram “enrabados” pela viatura rodoviária com Zé em êxtase ao lado dos policiais. Esta perseguição que teve até troca de tiros terminou no rio de Isabel quando os meliantes abandonaram o Volkswagen novinho em folha e fugiram à nado pelas correntes do Rio Pardo.
Amigo e serviçal dos policiais, Zeca deixara até de ser tão ativo na busca do seu “dicumer” para ficar diariamente olhando como se conduzia um veículo. Enquanto os “amigos” dirigiam, ele observava atentamente, decorando cada gesto que se fazia, desde a utilidade dos pedais até a forma como se utilizava o câmbio, trocando as marchas. Na época o local mais famoso da cidade era o cabaré de Ana Calanga na “Curva da Morte” onde durante a noite” acontecia um baile muito famoso, repleto de “mulheres-de-vida-fácil” leiloando à preços módicos as suas sensuais e tenras carnes, sempre regadas ao som da famosa concertina do virtuoso Veríssimo e do pandeiro do exímio Arerê, panderista que ficou famoso por tocar até com Waldick Soriano e – principalmente – por não gostar muito de tomar banho. O negão era uma fera no pandeiro, porém, quando o ambiente estava muito carregado e o calor batia, e que por motivos óbvios ele suava, aí malandro, a coisa ficava preta. Nenhum cristão conseguia ficar mais que dois minutos dentro do salão. O inhaca do nego era tanta que só ele e o sanfoneiro (por já estar acostumado com a catinga) conseguiam ficar dentro da sala. A Curva da Morte gerou grandes histórias para o nosso anedotário, como por exemplo, quando o finado João Paraíba (valente feito o cão) cismou de fazer o ferreiro da cidade comer um rato em decomposição regado à cachaça… O pobre do ferreiro levou uma mata de surucucu nos peitos, levando panadas de facão à torto e a direito. Este ambiente deixou de existir depois que Nego Bucho assassinou à tiros em uma tocaia o jovem Joel que era irmão de Nivaldo do Bar e muito querido no povoado. Após o crime, a comoção foi tanta que o cabaré ficou impossibilitado de voltar a abrir as suas portas. Tem boêmio que ainda hoje chora de saudades da Curva da Morte! Mas, voltemos à Zé da Gata e seus “amigos puliças” … Logo após cumprir rigorosamente um exaustivo dia de trabalho, a dupla banhou-se, barbeou-se e, após deixar o carro parado (com a chave no porta-malas) no posto de “Zé do Óculos”, desceram de pés em direção à famosa boate. Também eram filhos de Deus e como tal, precisavam de um pouco de diversão (e arte) no bordel mais famoso da região. Era tudo o que “Zé da Gata” queria. Depois de observar à distância os rodoviários beberem e caírem literalmente nos braços de duas cearenses pra lá de torneadas, o moleque voltou no “passo do Lui” para o posto, e, após vestir categoricamente a farda de um dos guardas, tendo o cuidado de dobrar as pernas da calça e as mangas da camisa que ficaram grandes e encher o quepe policial com papel-jornal para ajustar à sua cabeça, ele calçou o coturno entupido de papel de embrulho e realizou o seu grande sonho… Entrou na viatura, ligou a sirene, engatou a primeira marcha e, após colocar os “óculos” escuros na cara (em plena noite), saiu feito um aluado, engatando marchas e dirigindo na contramão (perdera a noção de que pista deveria seguir) com a sirene berrando mais que vaca parida.
Foi um estrupício! Carros saindo da estrada, outros tombando, outros descendo desfiladeiro abaixo, alguns colidindo, pessoas feridas gritando, menino chorando, mulheres desmaiando, aquela algazarra toda, aquele caos, buzinas ecoando de todos os lados, aquele “estraique” de carros pendurados uns nos outros e Zé em êxtase, não estava nem aí. Empurrava o pé nesta rural e seguia alucinado pela Rio-Bahia, com a adrenalina turbinando o seu corpo de menino, fazendo que o seu grande sonho fosse concretizado. Só parou quando o combustível acabou, deixando um rastro de guerra pelo caminho.
Nesta altura, o estrago já estava feito, os policiais que navegavam entre as voluptuosas coxas das cearenses foram chamados às pressas e, após constatarem o estado que ficou a viatura e do rastro de destruição que o moleque deixou pelo caminho, entraram em um velho fusquinha 66, caindo aos pedaços, saíram desesperados à procura de “Zé da Gata”, que neste interim, tremia apavorado debaixo da cama do seu velho pai, Antônio. Em um gesto de desespero, os rodoviários tentaram responsabilizar o pai de Zeca pelos danos, mas, como o velho não era bobo e diante da comprovação dos fatos através de uma renca de testemunhas, viram-se obrigados a inventar uma outra história e abafar definitivamente o assunto.
Foi assim que “Zé da Gata” ganhou um novo apelido, passando a ser conhecido pela alcunha de “Zeca da Viatura”. Quando alguém o chamava assim, o moleque estufava o peito, colocava os óculos escuros na cara e saía marchando, todo orgulhoso! Afinal de contas, com 13 anos de idade exerceu a função de Polícia-Rodoviária por pelo menos algumas horas.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Poeta e Escritor.
CSales, Quadra de Junho de 2023. Crescente de Inverno.