PROCURAM-SE COMUNISTAS.
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PROCURAM-SE COMUNISTAS.

Agora em setembro se completará 51 anos da morte de Carlos Lamarca (17 de setembro de 1971), impiedosamente metralhado sob a sombra de uma baraúna, nas entranhas do sertão baiano. A história do capitão do exército que desertou para participar da luta armada contra a ditadura militar ainda provoca desconforto às Forças Armadas. Após o golpe de 1964, o Governo Militar começou a famosa “caça às bruxas”. O estado, querendo fazer média com a união, acirrou a caçada aos “pseudos-comunistas” e, em contrapartida, quem pertencia ao partido dominante tinha o privilégio de denunciar desafetos, mesmo que o infeliz, sequer, soubesse que diabo vinha ser “comunista”.

Aqui neste pequeno torrão, dezenas de cartazes com rostos e nomes eram afixados diariamente nas paredes dos bares e das tendas mais populares como o Bar de Sinuca do seu Faé e o salão de Velho Barbeiro, estampando os rostos de Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis, Frei Betto, Carlos Marighela e Carlos Lamarca entre outros. Quanto menor a cidade, maior era o terror. Em 1970, ainda estávamos com o gostinho da conquista mundial da Seleção Brasileira na boca quando chegou a notícia que o nosso lugarejo estava entupido até os beiços de comunistas. Do alto da nossa ignorância, morríamos de medo do que poderia nos fazer aquele tipo de “bandidos”. A maior das fakenews era que o principal prato dos comunistas eram criancinhas recém-nascidas, cozidas no azeite quente. Cortava o meu coração ver as mães alucinadas protegendo os seus recém-nascidos, muitas utilizando perto dos berços, cães policiais de todo tamanho.  Tremíamos de medo destas histórias. O tempo passou e – felizmente – nenhum “comunista” deu as caras por estas bandas.

Do alto dos meus 13 anos de idade, munido de uma caixa de engraxate que eu mesmo fiz com tábuas recicladas utilizadas para transportar tomates, minha principal diversão era correr atrás do “dicumer” às margens da Rodagem BR-116, engraxando sapatos e tapetes de caminhões. Em um início de noite, testemunhei com estes olhos que a terra há de comer a chegada de 10 caminhões do exército com mais de cinquenta soldados armados de tudo quanto há. Depois de um monte de mungangas, montaram o alojamento em plena praça da feira fazendo um barulhão infernal sob os gritos histéricos do jovem comandante. Fizeram um círculo com os veículos, formaram um acampamento quase que intransponível, tendo o cuidado de posicionar sentinelas em pontos estratégicos, portando cada metralhadora que metia até medo, deixando trêmulas as famílias novo-conquistenses e excitados os moleques de rua que tal qual espectadores de um circo, aplaudiam efusivamente os movimentos da tropa. Cozinharam ali mesmo no meio da praça, dormiram em sacos – sempre esperando um ataque inimigo – e ao nascer do dia, caíram na lapa do mundo, sempre com uma invejável disciplina, em fila indiana, com os caminhões enfileirados tendo à frente um jipão todo incrementado com as cores do exército brasileiro, conduzido mecanicamente pelo bravo comandante-em-chefe.

Muito tempo depois descobri por motivos óbvios que aqueles soldados estavam indo caçar Carlos Lamarca, encurralado ao lado de um companheiro nas entranhas do sertão baiano. O ex-capitão do exército após saquear o seu quartel, fugiu levando dezenas de fuzis. Cercado no município de Ipupiara na região de Brotas de Macaúbas (Bahia), depois de passar vários dias se alimentando apenas de água e raspadura, o guerrilheiro resistiu bravamente ao cerco dos militares. Uma grande operação liderada pelo major Nilton Cerqueira foi montada e Lamarca e seu companheiro Zequinha foram mortos a tiros e expostos como troféus em um campo de futebol da comunidade. Para que a “Operação Pajussara” obtivesse o sucesso desejado foram necessários que se espalhassem na região o fakenews que Lamarca conduzia uma bomba e que caso fosse detonada, dizimaria todas pessoas e criações existentes em um raio de 20 quilômetros. Com medo, os moradores revelaram o local exato onde os guerrilheiros se escondiam. A elite da repressão veio toda para Brotas e fuzilaram Lamarca e Zequinha. Os corpos foram levados para São Salvador (ACM era o Governador na época) e ficou comprovada a execução da dupla com tiros nas costas e cabeças. A partir daí, caçar e entregar “comunistas” virou uma “diversão” que tirava o sono dos opositores do famoso regime. Aqui em “Candin” era público e notório que o intendente do recém-emancipado município sempre fora um político de esquerda. Os desafetos do intendente – que não eram poucos – aproveitaram a onda de denúncias que imperava na região e se deslocaram até a cidade de São Salvador para denunciá-lo formalmente. Diante do interrogatório, ficaram em dúvida se o denunciado era ou não integrante de carteirinha. Não se sabia ao certo se já fora ou não filiado ao partidão, porém, os elogios públicos que ele tecia a Luiz Carlos Prestes e a enorme quantidade de livros socialistas que abrilhantava a sua estante, não deixavam dúvidas. O velho só podia ser comunista! Assim, os argumentos foram fortes o bastante para motivar que o comboio de “caçadores de comunistas” (que já desciam com destino à Vitória da Conquista) desse um pulinho por estas paragens apenas para averiguação.

Já no finalzinho de 1971, eis o famoso comboio militar desaguando em Vitória da Conquista, prendendo impiedosamente os “comunistas” da região. Excitados, os desafetos do intendente foram até a cidade vizinha e entregaram de bandeja a cabeça do velho “cacique”, inclusive, revelando os títulos e os autores dos livros que o Prefeito dispunha na estante. No dia seguinte a coluna militar saiu de Conquista com destino à Cândido Sales, tendo como objetivo prender e desmascarar o Prefeito eleito.

Em Conquista, já tinham detido Pedral Sampaio e  outros líderes regionais, todos presos e enviados para Salvador. O nosso intendente tinha os seus contatos dentro da polícia conquistense e assim que foi avisado da nefasta visita, desapareceu na calada da noite. Ninguém deu notícia do seu paradeiro. Eis que no dia marcado para a visita do comboio militar, os desafetos do velho intendente se levantaram cedinho, trajaram as suas melhores vestes e munidos de chapéus e guarda-chuvas rumaram para a beira da rodagem. A tensão pairava no ar enquanto no centro da cidade centenas de moradores fofocavam baixinho, todos esperando o “circo pegar fogo”.  Umas 11 horas da manhã adentra o município via BR-116 uma coluna de Jipes militares repleto de soldados armados e de fardas engomadas. Deram logo uma saraivada de tiros para cima – fazendo que metade da população corresse abilolada para debaixo das próprias camas – e após darem algumas voltas pela cidade em um buzinaço infernal. se apresentaram para os correligionários, estacionando na porta da casa do velho prefeito e já foram entrando à força. Nas entrelinhas, o astuto intendente já se encontrava preparado para a ocasião e assim que o “vigia soprou” que os policiais estariam vindo, na mesma noite, com lágrimas nos olhos, ele viu-se  obrigado a jogar – juntamente com os seus familiares – dezenas de livros que compunha a sua rica e rara biblioteca em uma fossa que tinha no seu quintal. Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Luiz Carlos Prestes, Jorge Amado e Jean Jacques Rousseau foram todos enterrados na mesma fossa. Depois, foi só disfarçar a tampa, cobrindo com lixo em decomposição.

Assim que os soldados – comandados por um tenente extremamente mal humorado – adentraram a residência, encontraram apenas os serviçais que não souberam explicar o paradeiro da família. Apesar da devassa que fizeram na casa, revirando colchões, destruindo móveis e quebrando discos… Não encontraram nada que pudesse comprometer o velho. Mesmo diante de ameaças, os serviçais não souberam informar o paradeiro do prefeito e dos seus familiares. Sem muitas alternativas, as casas dos correligionários foram reviradas. No desespero os delatores indicaram a sede da Prefeitura como um possível esconderijo e lá foi o comboio à sua procura. Ao chegar deu de cara com o senhor Otávio. Este senhor  era o cidadão mais correto de todo o município. Simples, mais de 70 anos de idade, gentil, extremamente educado e querido por todos, seu Otávio ganhava a vida preenchendo escrituras, recibos e atas – tinha a melhor letra da cidade – e nas horas vagas desenvolvia o ofício de professor primário, de secretário da câmara municipal e de sagrado guardião das chaves da prefeitura. Ao ver a chegada do comboio militar, o atarantado professor correu para os soldados batendo continência (como se fosse um deles) e apresentando a chave do centro administrativo.

– Viva a Revolução, comandante, aqui está a chave da Prefeitura! Ela é toda a sua, faça o que achar conveniente!

– O Prefeito está escondido aí, velho? – Perguntou o jovem e arrogante tenente ao tempo que o pobre guardião era cercado por quase uma dúzia de recrutas enfezados e armados de fuzis.

– Ele não está aqui não, senhor! Juro! Tem dias que ele não aparece!

– E onde ele está agora? – Indagou o furioso comandante.

– Não sei informar não senhor, mas o senhor pode ficar com a Prefeitura! Aqui estão as chaves!

– Eu lá estou querendo Prefeitura de um lugarejo destes, velho imbecil? Tem algum comunista aí pra eu capturar?  – Perguntou o autoritário comandante.

– Inhô não, aqui é todo mundo a favor da revolução! Viva o Presidente Médici! – Gritou seu Otávio estendendo o braço em uma saudação nazista!

– Vá para o inferno, velho gagá! Eu estou caçando comunistas, o que vou fazer com uma prefeitura de um lugar miserável destes? Não estou aqui para perder tempo não, a Bahia está cheia de comunistas para prender! Vamos homens! Outras cidades nos espera! – Falou o comandante entrando no jipe, dando meia-volta e retornando para Vitória da Conquista, deixando completamente frustrando os denunciantes.

Depois da saída dos militares, seu Otávio teve um ataque de tremedeira tão disgramado que só parou quando seu Rufino Farmacêutico lhe trouxe um copo de água com açúcar e lhe aplicou uma injeção nas nádegas. Menos de uma semana depois, o Prefeito se apresentou no Palácio do Governo na cidade de Salvador, jurando ser o mais fiel dos anticomunistas, se autodeclarando a favor do golpe militar. Com isto, ficou bem com as autoridades da capital e retornou para a sua cidade com o título de “caçador de comunistas”, embora, soubesse mais que ninguém, que aqui o povo não tinha nem ideia do que isto viria ser.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Maio 2023.

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