Nos meados dos anos 1970 “Candin” já era, digamos assim, meio taludinha e a boate “A Toca da Onça” sob a administração de Zé Vitor fazia o maior sucesso, mesmo com sua diminuta sala de dança, embora, decorada com luz negra e pinturas de neon. O espaço dançante contava com o adjutório luxuoso das famosas “Damas-da-noite” e quem não dispunha de algum trocado para navegar literalmente nos prazeres da carne, se contentava em tomar uma ou duas “cubas-libres”, bebida formada por uma mistura de rum, cola e limão. Quem consumisse pelo menos um drinque no bar da boate poderia dançar gratuitamente a noite “inteirinhazinha”. A música do momento era a lambada, oriunda do Norte, que chegou por aqui através da voz inconfundível do paraense Pinduca.
Nesta época existia neste torrão o famoso e inquieto João Ralabunda, cidadão que pra lá de fanfarrão que adorava contar vantagens. O cara desenvolvia o ofício de feirante e era mais conhecido que banana caturra. Quem viveu por aqui até meados da década de 1980 deve se recordar bem da figura, que apesar de muito trabalhador, tinha o defeito de ser extremamente viciado em todos os tipos de jogos. Quando por um motivo ou outro, tomava suas “conenas”, só Deus na causa! Se locomovia amparado por uma velha muleta de madeira e muitas vezes, chegou até a ser confundido com uma ou outra alma penada no breu das noites Nova-Conquistenses.
João Ralabunda nascera com um pequeno “defeito de fabricação”, vítima de paralisia infantil, chegou aos 34 anos de idade se arrastando como um bebê pelas ruas da futura “Candin Capadô”. Antes que você fique com pena do infeliz – que na prática era prepotente e arrogante – vale dizer que o moço adorava uma boa encrenca. Qualquer briga que tivesse na cidade, podia ter certeza, lá estava ele envolvido. Bebia, esculachava todo mundo, quebrava o que encontrava pela frente, e, diziam as más línguas, quando enfezado, dava até uns bons cascudos em dona Marcolina, sua pobre mãezinha, da qual, quando “medicado” acusava veementemente de tê-lo parido com aquele “defeito”. Diariamente, João era visto tomando umas e outras no boteco de Dão Saracura – seu ponto de apoio. Bebia que ficava enfastiado. Todo mundo morria de medo de Ralabunda, pois, apesar de só se locomover arrastando a bunda no chão, o seu grau de embriaguez misturado com a sua infezação era uma equação de meter medo! Tanto que Tertuliano e seu filho Afrânio, que exerciam o oficio de carregadores de cargas chegando à pegar até dois sacos de arroz de uma só vez, se invocaram de dar uma pisa em Ralabunda, logo após um desentendimento por causa de uma partida de sinuca. As más línguas contam que a surra que Ralabunda deu na dupla foi tão “disgramada” que os dois correram mais que galinha na frete da raposa. Atacado pelos “chapas”, o deficiente se esquivou dos golpes da dupla com uma agilidade incomum, e após rastejar velozmente pelo terreiro feito uma cobra, arrebentou as cabeças dos brigões atirando bolas de sinuca, terminando com uma surra de tacos que fizeram dupla correr desmoralizada. A briga só terminou com a chegada do Cabo Sercundino que teve um trabalhão “disgramado” para acalmar o deficiente. Ralabunda saiu ileso, enquanto pai e filho tiveram que tomar pontos às pressas na farmácia de seu Rufino com as respectivas cabeças rachadas e uma renca de hematomas pelos corpos.
Neste tempo rolava um boato por aqui, que, depois das “horas mortas”, aparecia no cemitério local uma espécie de lobisomem. Uma coisa bizarra! O bicho além de adorar abocanhar uma outra batata de perna dos moradores (de preferência feminina), não aguentava ver uma lua cheia que já saía uivando. Em seguida saía correndo pelo centro da cidade se espojando na grama seca do jardim municipal, deixando a população com os cabelos “arrupiados”. Estes boatos, cada vez mais turbinados, sapecava terror nos pobres moradores. Em noite de lua cheia, muitos, sequer, botavam a cabeça para fora de casa. Estas histórias eram contadas com tanta veemência que muitos diziam já ter emendado os bigodes com a livusia. Mané Gostoso, que morava no entorno do cemitério, era um destes. Certa noite voltava calmamente da “Toca da Onça” quando deu de testa com o “encantado”! Só não foi mutilado por que era o maior velocista do time da cidade e correu feito um desvalido para escapar das garras e unhas do “Zé-de-Telo”. Dado a sua capacidade indescritível de saltar muros, conseguiu escapar ileso após pular três cercas “incarriadas” e dormir agarrado na batina do padre Pedro.
Naquela época, sem energia elétrica, qualquer sombra era uma visagem e qualquer mentira se transformava em verdades absolutas. Maria de Januário e Pedro Meia-Garrafa também já tinham até batido de frente com o “dicujo” e, sem muitas alternativas, “passaram sebo nas canelas” correndo mais que notícia ruim. Maria, que era famosa por ser extremamente namoradeira, por motivos óbvios, já tinha mapeado cada canto da cidade, conseguiu se safar escondendo dentro de uma velha construção. Escapou do bicho, mais chegou à residência dos seus pais toda mijada, o que lhe valeu o apelido, a partir daquela data, de “Maria Mijona”! Pedro, ao ser atacado pela fera, desfaleceu, e ao ser encontrado no dia seguinte com os fundos das calças rasgado e sujo por uma gosma parecidíssima com clara de ovo, ficou completamente desmoralizado, até porque, saiu afirmando que não se lembrava de absolutamente nada que acontecera naquela noite. Foi “difamado” pelas más línguas que afirmava com relativa convicção que o bicho havia acabado com a “donzelice” do pobre coitado. De nada adiantou o infeliz secar as lágrimas de tanto chorar, nunca mais se livrou do apelido de “quenga de lobisome”!
Diante de tanta assombração, os moradores de Nova Conquista deixaram de sair à noite das suas casas e assim que anoitecia, famílias inteiras dormiam amontoadas em um mesmo quarto, devidamente iluminados pela luz da candeia, rezando uma renca de ladainhas. Ninguém tinha coragem de combater a livusia. Mesmo diante deste quadro de terror, uma coisa chamava a atenção, o “buteco do Saracura”, continuava funcionando do mesmo “jeitim” … que fizesse sol ou chuva, que caísse raios ou trovão, e que se estivesse em tempos de guerra ou de paz… ficava aberto de noite e de dia (e até no pingo do meio-dia) atendendo dignamente uma seleta clientela que degustava compulsivamente a sua famosa pinga temperada com folhas de fedegoso. O principal cliente deste buteco era João Ralabunda, o feirante encrenqueiro! Quem conhece pinguço sabe que o indivíduo é capaz de qualquer coisa para degustar uma canjebrina. Enquanto o povo tremia de medo da assombração, o boteco de Saracura passava a noite inteirinha entupido até os beiços de cachaceiros. Em uma destas noites, eis que ninguém aguentava mais ouvir Ralabunda contar vantagens.
– É porque eu não ando direito. Se minhas pernas fossem boas como a de vocês eu ia lá no cemitério, pegava este “lobisome” pelos cornos e moía ele de pancada na frente todo mundo, mas, Deus sabe o que faz, por isso que eu nasci assim. – À medida que bebia, ficava cada vez mais valente, na quarta vez que repetiu a história, Saracura já agoniado, tomou duas talagadas da sua temperada e falou com a sua voz de trovão para o negão Nestor, outro inveterado “pinguço”, forte do tamanho de um guarda-roupa (acostumado a fazer qualquer coisa por uma generosa dose de pinga): – Nestor! – Fala meu patrão, sua palavra é lei! – Respondeu o pingunço babão. – “Vancê” tem coragem de “cunduzi” este indivíduo até o cemitério? Leva ele na cacunda, deixa em cima da carneira do “Coroné” Fenelom e volta que eu vou liberar um mês inteirinho de temperada de graça, você não vai pagar nada durante trinta dias. Topa a parada? – Ôxe! Apois sim. Por trinta dias de canjebrina de graça eu beijo “inté” um jumento afeminado. Bote logo duas talagadas aí pra eu temperar a garganta, bote! Vou agora “mermo” levar este valente “inté” o campo santo. – Nem deu tempo de Ralabunda questionar, duas doses e meia depois, lá estava a dupla saltando o muro do cemitério, rezando para não bater de frente com o temido Lobisomem. Ao adentrarem o campo santo, Ralabunda percebeu a encrenca em que estava se metendo e tentou voltar atrás: – Moço, “vamo” deixar isso pra lá, “ancê” me leva de volta, a gente toma um litro de pinga na conta de Saracura e “falamo” que “num vimo o táli do lobisome”! – Sugeriu Ralabunda do alto da cacunda de Nestor! – “Ancê” tá sugerindo que “devemo” passar a perna em Dão Saracura? – Oxente! Uma mentirinha de nada, que mal tem isso?
– Não “sinhô”! O valentão aqui é “ucê”! Quem anda arrotando é “ucê”, portanto, vou lhe “jogá inriba” da carneira do “Coroné” e “capá” o gato conforme o combinado. Enquanto “ucê infrenta” o bicho eu bebo a minha conena em paz!
– Moço, deixa de lambança! A gente finge que não viu nada, volta lá e toma de graça a pinga de Saracura, ninguém precisa ficar sabendo. “Vamo” mexer “cum lobisome” pra que? O bicho tá lá quieto no canto dele e nós vamos torrar a paciência do infeliz? – Não foi por acaso que Saracura mandara o negro Nestor levar Ralabunda, confiava imensamente no negrão e como se vê, a confiança era correspondida. Trôpegos, adentraram ainda mais a casa dos mortos e mesmo com a lua cheia brilhando no céu, saíram tropicando em cruzes e carneiras até chegarem ao mausoléu do famoso coronel. – Pronto! “Cheguemo”! – Falou Nestor. – Solta minha cacunda e pode descer. Agora “ocê” fica “quietim” aí que eu volto pra lhe buscar de manhã!
– Nestor, de Deus! Num me deixa aqui não, “homi”, se eu ficar “sozim” aqui o “lobisome” vai cumer meu “figo”! – Implorou Ralabunda se segurando com todas as forças nas costas de Nestor. – Oxente, num é você que anda dizendo que vai moer o bicho na pancada? Agora o problema é seu! Desça que eu estou indo embora!
– Pelo amor de Deus, me leva com você. Se o “lobisome” aparecer aqui “cuma” eu vou correr se nem pernas direito eu tenho? – Implorava o ex-valentão. – Aí, caboclo, o negócio é com “suncê”. Meu compromisso foi lhe deixar aqui na carneira do “coroné.” – Nestor ameaçou sair e Ralabunda desesperou-se se agarrando ainda mais forte ao corpo do negão: – Num vá não. Toma minha meiota de fedegoso, toma. Fica mais eu! – Todo mundo sabia que o fraco de Nestor era a canjebrina, assim que recebeu a meiota se sentou na tumba e enquanto solvia tranquilamente a temperada, Ralabunda, tremia de medo, se agarrando ainda mais ao seu cangote.
À medida que o tempo ia passando, um suspense desesperador riscava a noite. Nestor solvia lentamente a meiota – pra que a cana não acabasse logo – enquanto Ralabunda, desesperado, se agarrava sofregamente a um Nestor indiferente, que bebia arrotando o fedegoso da cachaça. Não passara nem meia-hora e surge do outro lado de cemitério um vulto negro e horroroso, trajando apenas uma capa preta, rosnando feito o diabo e saltitando freneticamente em cima de uma cova rasa: – Aarrrgggghhh! – Gritava a livusia cortando o silêncio da noite. – Ai, meu Deus! É o bicho, é bicho, é o bicho… – falava Ralabunda se mijando todinho. Sem entender absolutamente nada, Nestor apurou as vistas e viu aquela coisa preta desembestar em sua direção. Bastou os cabelos arrepiarem para Nestor sapecar violentamente Ralabunda em cima do mausoléu do Coronel e desembestar ladeira acima. Subiu a ladeira gritando mais que papagaio capturado e em velocidade máxima. Assustado, já chegou metendo os peitos, arrebentando as portas do bar de Saracura, e ao tentar recuperar o fôlego, butucou os olhos ao deparar com a figura ofegante que ali já se encontrava. Quem estava lá? Sim. Tremendo e gaguejando de medo, lá estava João Ralabunda!
O fanfarrão não andava, é verdade, mas, diante do medo, chegou ao buteco antes do companheiro. Até hoje não se sabe se a lenda era verdadeira. O que se sabe, foi que a partir daquela data o papudo do Ralabunda deu um sossego para os ouvidos dos frequentadores do “buteco”, por motivos óbvios, deixou de contar vantagens e o advento da chegada da luz elétrica acabou completamente com o mito do lobisomem espojador!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales – Bahia. Quadras de Abril de 2023. Minguante de Outono.