– São cinco seções, eu disse, cinco seções… – Bradava a inconfundível voz de Geraldo do Cinema através das duas bocas de alto-falantes que faziam a alegria da pequena Nova Conquista. – NASCIMENTO, VIDA, PAIXÃO E MORTE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, hoje na tela do Cine Metrópolis! – Falava com ênfase o nome do filme. Sim. Era sexta-feira Santa que muitos preferiam dizer Sexta-Feira da Paixão. Este era o dia que Geraldo Gomes com o seu pequeno cinema lavava a égua, exibindo por cinco vezes consecutivas a velha película muda e em preto e branco do diretor italiano Giulio Antamoro, produzida em 1916. As seções começavam às três da tarde e ia até as dez da noite, todas lotadas com gente saindo pelo ladrão. Era o dia que quem não tinha o hábito de ir ao cinema, comparecia in loco levando toda a família, inclusive a cachorrinha de estimação.
Como é sabido por todos, o período da páscoa é quando as pessoas se transformam da água para o vinho (sem trocadilhos, por favor!). Deixam de lado o ódio e o rancor, se tornando bondosas, sensíveis, compreensivas e até tolerantes. Muitas chegam a se arrependerem verdadeiramente dos malefícios provocados ao outros durante os 365 dias do ano. É a época em que os mais inveterados carnívoros se abstém do pecado carnal (neste caso, de forma literal mesmo) para traçar uma boa moqueca de peixe, reunindo a família inteira em torno da mesa como Jesus Cristo na Santa Ceia. O problema é que assim que os ponteiros do relógio avisa que chegou o Sábado de Aleluia, a cuíca muda de tom e chega a hora de a coruja piar! Nego sai liberando todo o pecado reprimido durante a quaresma e quem paga o pato é o infeliz do Judas. Pois é. Aqui no sertão da Ressaca existe a tradição de descer a ripa no pobre boneco de pano que caracteriza o apóstolo traidor. O bicho apanha mais que mala de mascate e após ser literalmente linchado pelas ruas da cidade por uma multidão ensandecida, é pendurado em um poste e “queimado vivo” com as pessoas uivando iguais à lobos famintos, aplaudindo de forma animalesca o crepitar das chamas e o barulhão dos fogos de artifício.
Nos anos 1950, a população do Porto da Santa Cruz tinha como única obrigação neste período, participarem efetivamente dos eventos promovidos pela pequena Igreja existente na localidade. Bastava ter missa para os ribeirinhos desaguarem no pequeno povoado, provocando até engarrafamento de montaria. Os fieis chegavam apeados em charretes, carros-de-boi, cavalos, mulas, éguas, burros e até em jumentos. Era comum ver as beatas com os olhos rasos d’água diante da pregação empolgada do Padre Anfilóphio, já os maridos deixavam as senhoras na igreja e davam uma ou outra escapadinha, para sorrateiramente tomarem uma canjebrina no boteco de João Saracura. O ponto alto da festa era a famosa “Procissão da Sexta-Feira da Paixão”. Vinha tanta gente que o povoado ficava pequeno, tanto que as missas eram ditas ao ar livre.
Neste tempo o morador mais famoso da localidade era Mané Doido, que tinha o cobiçado cargo de “carregador” oficial da Santa Cruz na procissão. Este enorme artefato era talhado impecavelmente em jacarandá. O condutor da cruz ia sempre à frente da procissão, com um “centurião” lhe açoitando com um chicote de tiras de couro enquanto o santo padre conduzia as ladainhas através de um enorme megafone construído com latas vazias de querosene. Durante a procissão, Mané Doido se encantava com os cânticos puxadas por Dona Frutuosa, a voz mais estridente do povoado. Se era dia de procissão lá estava Mané, carregando com extremo zelo a cruz de madeira. Ele gostava tanto de levar a “bendita”, que já a considerava quase que sua propriedade, tanto que durante a semana ele ficava um tempão polindo a cruz com óleo de pau.
Só existia uma coisa que tirava Mané do sério. Durante a quaresma ele era forçado a entregar a cruz para que Jaconias da Venda (indicado pela alta cúpula da igrejinha) o substituísse na função, justamente na maior procissão do povoado. A exigência deixava Mané com os nervos à flor da pele, e, muitas vezes era acometido de uma incontrolável fúria, correndo perturbado, derrubando na base da cabeçada tudo que era árvore que encontrava pela frente. E olhe que era cada lapa de árvore que metia até medo. O pior era que mesmo mentalmente limitado, o argumento usado pelo padre Anfilóphio não fazia nenhum sentido para Mané. O pároco dizia, por exemplo, que a barba comprida de Jaconias o habilitava na condução da cruz, já que fisicamente, o comerciante era cagado e cuspido a figura estampada nas pinturas que retratavam o Cristo crucificado! Mané que, claro, era doido mas não era besta, discordava veementemente dos argumentos do padre, tanto que diante da atitude, ficava “cuspindo marimbondo”!
O incômodo de Mané começava uma semana antes, quando Maneca da Loja – reliento feito o cão -, ao passar por ele na porta da igreja gritava apenas para pirraçar o pobre coitado na frente de todo mundo:
– Vai perder a cruzinha, hein, Manelim? Jaconias da Venda está vindo aí e já falou que quem carrega a cruz na Sexta-Feira da Paixão é ele!
Todo mundo no povoado sabia que desde pequenininho, “Mané” – que caíra de cabeça na água ao pular de uma gameleira -, não batia muito bem das “bolas”. Quando provocado ficava tão irritado que chegava a babar de ódio. Além de espumar os cantos da boca remoía por horas a sua infezação! Na opinião dele (e somente dele), não era justo o que o padre Anfilóphio fazia. Quem passava o ano todo polindo a cruz era ele, e, quando chegava à semana santa com a procissão dobrando de tamanho, com a participação de fieis vindos até da Vila dos Montes Claros, lá vinha o saltitante Jaconias lhe surrupiar o lugar? Isto não estava certo! Pensando assim, o jovem resolveu questionar o pároco.
– Santo “pádi”, eu “num” acho certo “intregá” a cruz “p’rêce” amarelo, não!
– Manoel, você tem que entender, meu filho! Jaconias é a cara do filho de Deus! Eu já lhe disse isso! Por isso quem deve conduzir a Santa Cruz e ele.
– Que nada, “pádi”! O que ele tem “q’eu num” tenho? Ele tem barba, eu tenho. Ele tem cabelo “cumprido”, eu tenho, ele “carça” butina, eu também “carço” … E eu sei até cantar as ladainhas, coisa “q’uele num” sabe!
– Manoel, Manoel, bata nessa boca, meu filho! Deixe de ser pecador! “Ocê é mêi escurim”, meu fí, ele é loiro! Olha lá os quadros na parede… Ele é a semelhança de Cristo cuspido e escarrado!
– Oxente, “pádi”, quem “agarante” que Deus é desta cor? O povo pinta da cor que quiser… “num” acho ele “paricido” não sinhô!
– Oia, Mané, “vancê” está duvidando da autoridade da igreja, “num” é? Já sei o que tu está querendo! – Ameaçava o padre. – Está querendo que sua alma vá para o inferno queimar eternamente no fogo de enxofre, não é?
– “Vixe Maria, pádi”! Fala isso não! Eu morro de medo dos “zinfernos”!
– Apôis então, seu Manoel Batista dos Santos, é bom o senhor não questionar o desejo de Deus, entendeu? Está sendo egoísta! Você sabia que o egoísmo é um pecado capital? Entregue de bom coração a “santa Cruz” para Jaconias levar, e vá pagar agora mesmo a sua penitência! Lave a boca com água benta e reze quinze “pais-nossos” e vinte “ave-marias”! – Se tinha uma coisa que fazia literalmente Mané Doido tremer na base, era o medo do fogo de enxofre do inferno. O padre Anfilóphio sabia disso, e, quando por um motivo ou outro Mané se alterava, ele puxava este trunfo – guardado a sete chaves nas mangas da batina – e apresentava para o jovem que ficava assustado, e, embora, contrariado, fazia o que o padre pedia, sem questionamentos.
Enquanto Jaconias participava alegremente da procissão, Mané, ficava o tempo inteiro com os braços cruzados, com a cara amarrada e fazendo muxoxo! Nem mesmo as ladainhas puxadas “estridentemente” pela voz de dona Frutuosa – a cantadeira oficial -, o alegrava. Nas entrelinhas, Mané alimentava o sonho secreto de um dia vir a representar a figura do Cristo crucificado na procissão da Paroquia de Nossa Senhora das Graças na Vila da Conquista! O único problema era esse tal Jaconias, caixeiro-viajante fuleiro, saindo sabe-se lá de onde, vir lhe “usurpar” o lugar que ele conquistara com tanta dedicação. As más línguas (sempre elas) garantiam que as fartas feiras que diariamente chegavam à casa paroquial – enviada gentilmente por Jaconias – pesavam muito na escolha do padre Anfilóphio e da alta cúpula da paróquia. Porém, provar que era bom… ninguém se habilitava.
Eis que chega a Sexta-Feira Santa e durante a procissão, lá ia Jaconias todo suado, com o rosto manchado de tinta vermelha, com uma coroa de espinhos na cabeça, conduzindo dramaticamente a pesada cruz morro acima, com Hermenegildo Sapateiro lhe descendo a ripa com um chicotinho artesanal de matéria plástica. Diante do açoite o comerciante se contorcia todo, fingindo estar sentindo toda dor do mundo. Diante da cena, Mané Doido deu uma bistunta e perdeu completamente as estribeiras. Correu pra perto do Cristo e gritou bem no seu cangote:
– É cada tipo de Cristo que aparece… Oia aí, “num guenta” nem carregar a cruz direito e fica fingindo que está sentido dor! “Eu sô um Cristo muito mió” que “ucê”, seu cagão! – Ao ouvir o despropério, Jaconias, imediatamente sapecou esta cruz no chão e foi se queixar com o Padre. Ao ser comunicado, o pároco – diante de todos os fiéis – pegou o megafone e passou uma descompostura púbica em Mané Doido, que, constrangido, ficou da cor de um pimentão. A coisa que parecia estar resolvida com o pedido de desculpa de Mané, mudou completamente quando a arrogância de Jaconias falou mais alto: – Expulsa este infeliz da igreja Padre, este louco não serve pra absolutamente nada! – Pra que? Foi ouvir e Mané Doido ficou completamente transtornado:
– O que? “Vancê” é apenas um caixeiro-viajante marreteiro, quem é “vancê” pra “modi” mandar o “pádi” me expulsar? Toma vergonha nessa cara, seu xibungo!
– Êpa, aí não! Xibungo é sua mãe! – Bradou um inocente Jaconias antes de testemunhar um Mané completamente alucinado partir feito um touro raivoso para cima dele, e, após agarrarem-se um ao outro, desceram trocando tabefes (rolando feito um pote) ladeira abaixo até caírem dentro do rio.
A coisa foi tão feia que foram necessários uns dez homens para imobilizar Mané Doido que deixou Jaconias mais quebrado que arroz maranhão e mais “muchilado” que o “baqueleleixo” de Joca Barbudo. Foram duas semanas de cama tratando as costelas trincadas, os hematomas espalhados por todo o corpo e a meia dúzia de dentes quebrados na boca. Foi um tumba apoteótico.
Jaconias nunca mais quis (para desespero do padre Anfilóphio) participar de nenhum evento que a paróquia estivesse promovendo. Sempre que era chamado, inventava uma ocupação inadiável e chispava a mula!
A partir daquele dia ficou definido: Fizesse chuva ou sol, em todas as procissões, Mané Doido seria o condutor oficial da “Santa Cruz do Santo Porto”! Mané ficou tão feliz com a decisão da paróquia que a partir daquela data deixou até de sair ao sol, queria clarear um pouco a pele para ficar parecido com a pintura do Cristo crucificado, estampada na porta da igreja.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales – BA. Quadras de Abril de 2023, Crescente de Outono.