Dizia o antigo locutor, Geraldo Gomes, que quem mora em Cândido Sales, mora mais perto de Deus. Nem sempre foi assim. “Candin” nasceu às margens da rodagem Br-116 e a fonte econômica existente na época se resumia ao dinheiro deixado pelos motoristas que por aqui paravam. Oficinas, borracharias, quiosques, restaurantes, dormitórios e baixos meretrícios contribuíam efetivamente para a economia do povoado. Na época, dezenas de jovens (de ambos os sexos) sobreviviam da venda diária de cocadas, milho verde, pamonhas, biscoitos, doce de leite, arroz doce, rolete de cana, pirulitos, laranjas, mingau e mungunzá na beira da pista. A prestação de serviço desenvolvida pelos “locais” também contribuía para a situação econômica. Dezenas de lavadores, engraxates e lubrificadores disputavam literalmente no tapa os trocados deixados pelos motoristas de caminhões que por um ou outro motivo passavam por aqui.
Em 1960, a futura “Candin” ainda era o povoado de Nova Conquista com apenas umas duas ou três ruas, a principal era cortada de ponta a ponta pela “rodagem da Rio-Bahia”, na beira da pista a grande atração era a barraquinha de um moço muito popular por aqui, alcunhado de “Sanduíche”, que só funcionava durante a noite e ficava dentro do hotel de seu Lindolfo, do outro lado da pista ficava o quiosque de madeira de seu Galdino, o pai de Carlitinho e bastava subir um pouco a rua para dar de cara com o restaurante de Antônio Serve-Bem (pai de Kenão). Este restaurante ficava completamente lotado nos dias de feira.
Nesta época os Ferraz – ancorados na Religião Adventista – dominavam as principais cidades do entorno. Tremedal, Belo Campo e o distrito de Quaraçu, que, rezava a lenda, seria emancipado levando Nova Conquista como distrito à tiracolo. O projeto da família Ferraz era dominar politicamente toda a região. O povoado de Nova Conquista por ter nascido às margens da BR-116 (portanto, sem um lastro familiar que o respaldasse), destoava completamente desta lógica, passando assim a ser uma área de resistência a este pretenso domínio. Nova Conquista foi formada por pessoas de todas as índoles e oriundas das várias regiões do país. Muitas, ao passar por aqui, deram de cara com a imensidão de água do Rio Pardo e foram armando o barraco literalmente por aqui. Sim, o que motivou o povoamento deste torrão foram as águas pardas do rio, já que os retirantes “desaguavam” maciçamente por aqui. O povoamento fez o distrito ganhar uma importância surreal, passando a ser politicamente disputado por dois antagonistas de peso. De um lado Seu Osvaldo Ferraz – famoso ancião e experiente farmacêutico – culto, pregador preparadíssimo da religião adventista e extremamente carismático. Loiro, descendente direto dos mórmons americanos, representava a família predominante dos Ferraz. Do outro, Moisés Felix dos Santos (se autointitulando representante direto do povo humilde) que neste período chegou por aqui vindo de Divisópolis (Minas Gerais), embora, fosse oriundo de Jaguaquara, Bahia. Nas entrelinhas, travava-se uma “guerra santa” e silenciosa pelo poder político da região. Se seu Osvaldo era culto e extremamente respeitado pela classe dominante. Moisés era o sabido! Extremamente astuto, magérrimo, desengonçado, tranquilo e falava manso. Trazia no rosto traços judeu e além de alto, era calvo e ostentava um fino bigode e um paletó surrado. Por ser bastante comunicativo, logo caiu nas graças de um povo que ojerizava a família dominante e necessitava de um líder que os conduzisse no embate contra os Ferraz!
Se alguém adoecia, não importando o tipo da doença, desde maleita até doenças venéreas – muito comuns na época –, o velho farmacêutico comparecia e medicava o doente sem cobrar absolutamente nada. As receitas de seu Moisés eram “tiro e queda”! Ninguém morria sem antes trocar ali mesmo no leito de morte um ou dois dedos de prosa com ele! Os acamados ou desorientados, mandava um recado para Moisés que comparecia de forma imediata à residência do enfermo por mais humilde que pudesse ser e só a presença do homem já deixava o infeliz bem melhor da doença. Assim, pregava-se aos quatro cantos do povoado que as injeções no novo farmacêutico levantavam até defuntos! Ancorado nesta fama, Moisés passou a pleitear o cargo de líder político do Município. Para isto contava com o apoio irrestrito das famílias Sales/Gusmão, ricos fazendeiros da região, liderados, obviamente, pelo então prefeito de Vitória da Conquista, Gerson Sales, que não por acaso, era filho do fazendeiro Cândido Sales – que posteriormente viraria nome desta cidade!
À medida que a fama de Moisés foi crescendo, a criatividade do candidato foi aumentando. Por exemplo, todo dia de feira (na época, sábado), religiosamente, Moisés colocava estrategicamente uma cadeira de madeira bem no meio das barracas e, entre frutas, legumes, grãos, carnes, verduras e farinha, ele fazia o que melhor sabia, ou seja, assistencialismo social com a extração de dezenas de dentes cariados de pessoas carentes. Seu Moisés chegava cedinho à feira, sempre acompanhado de Manelão, um negão alto e forte (diziam ser o segurança do político), que era encarregado de segurar uma pequena bacia de zinco com uma mão e um pano branco na outra. O farmacêutico com a calma que lhe era peculiar, pedia gentilmente para que o infeliz abrisse à boca e – quase sempre – sem um pingo de anestesia, metia-lhe o boticão goela adentro. Geralmente, a extração cumpria um ritual impressionante: Primeiro chegava o paciente conduzido sempre a contragosto pelo pai ou pela mãe, e era “forçosamente convidado” a se sentar na velha cadeira de madeira que mais parecia uma cadeira de tortura. Na sequência, o pobre infeliz (nervoso morrendo de medo) ainda tinha que indicar o dente que doía, no nervosismo, muitas vezes indicava o dente errado e sofria em dobro. Um hábil aperto, um giro de 360 graus e uma rápida puxada e, lá vinha o dente cariado boca afora. Quando isto acontecia, o infeliz dava um pulo tão medonho que levava até a cadeira e se o ajudante fosse fraco ia junto. Já voltava à terra firme golfando uma mistura de sangue e pus, exigindo um malabarismo impressionante de Manelão que pegava a mistura macabra com a bacia em pleno ar, antes mesmo que esta caísse ao chão. O alívio da extração entrelaçado à dor violenta deixava o paciente confuso e quase desfalecido, porém, antes mesmo de recuperar as forças já era impelido para fora da cadeira para que outro corpo ocupasse o mesmo espaço.
De feira em feira, a fila crescia vertiginosamente. O agradecimento por parte dos parentes era sempre a promessa de voto certo na próxima eleição. Claro que um ou outro “paciente” queria agradecê-lo mais intimamente, como no caso de “Maricota de Anáia”, que ao tentar beijar seu Moisés à força – logo após ter extraído meia dúzia de caninos e molares –, sujou de sangue coalhado toda a roupa do dentista, fazendo que a partir daquela data ele passasse a trabalhar com luvas, máscara e um avental branco de lona impermeável!
Nesta época tinha um rapazola por aqui que era conhecido por Totonho e tinha uns quinze anos de idade. Este moço era o primogênito de seu Lau e dona Judite, moradores do Riacho dos Coçotes. Magrelo, alto, forte e malino feito o diabo, apesar da pouca idade, o jovem já tinha perdido praticamente todos os dentes da boca. Os poucos que ainda lhe restavam eram imensas crateras, que, quando caía algo quente (ou gelado) dentro, era uma dor insuportável. Era muito comum se ver diariamente o infeliz do filho de seu Lau com um pano amarrado no entorno do rosto todo inchado. Vira e mexe lá estava ele chorando e batendo a cabeça na parede de enchimento da velha tapera, morrendo de dor de dentes.
Um belo dia, depois de ficar uma semana chorando com uma dor disgramada em um dente cariado, o garoto resolveu aceitar a sugestão da sua velha e querida avó Amélia, para irem até o povoado de Nova Conquista arrancar com seu Moisés, os dentes que tanto lhe torturavam. Após a confirmação do funesto dia, o medo foi tanto que os dentes que não paravam, sequer, um minuto de doer (como que por encanto), deram uma trégua de uma semana ao rapaz. O jovem Totonho já estava até pensando em desistir da empreitada quando chegou o maldito dia. Logo cedo, a contragosto, o rapaz teve que correr até o Riacho dos Caçotes para lavar (mal lavados) as principais partes do seu corpo, empapuçou os seus cabelos crespos de brilhantina e após uma cansativa caminhada por cerca de uma hora e meia, lá estavam eles bem no meio da feira de Nova Conquista. Dona Amélia com o corpo todo troncho amparado em um cacetinho de madeira e o garoto todo arrumadinho, de banho tomado e tudo sendo quase arrastado pela pobre anciã.
Durante as quase duas horas que Totonho ficou esperando ser atendido, pode contemplar desesperado o show de horrores promovido por seu Moisés e o seu fiel escudeiro Manelão. Duas dezenas de gritos, alguns desmaios e várias cusparadas de sangue depois, o pobre rapaz se viu forçado a sentar-se na cadeira macabra do velho político. Em pânico, pode contemplar a cara de repugno do seu “algoz” ao ver a situação caótica dos seus dentes!
– A boca deste menino tá feia! – falou seu Moisés, balançando a cabeça em reprovação. Mal terminara de falar e já foi puxando pra fora da boca o primeiro dente cariado. A dor foi tanta que Totonho pediu para morrer… Tentou gritar, mas o diabo do boticão tampou lhe novamente a boca, quase o sufocando.
Na sequência foram mais duas pegadas firmes, dois giros de 360° e mais meia dúzia de berros escandalosos. Diante dos gritos alucinados de Totonho, metade das pessoas da feira, pra lá de curiosas, rodearam a cadeira do infeliz formando um círculo intransponível. se divertindo com o sofrimento do pobre coitado. Se tem uma coisa que diverte a maioria dos seres humanos é o sofrimento alheio. Dona Amélia, com o coração partido, chorava junto ao pobre do neto, que em desespero berrava feito um bezerro desmamado diante dos risinhos irônicos dos presentes…
– Me solta, pelo amor de Deus, deixa eu ir embora… Me solta eu quero “ir me bora”! – à medida que ia gritando, cuspia sangue pra tudo que era lado. O sangue que saía da sua boca lambuzava as carnes de sol, as bruacas de farinha, os panincus de tecidos, os fardos de peixes secos, respingando até no delicado bigode do nego Manelão, que, nesta altura do sucedido, utilizava toda sua força (que não era pouca) para sustentar o desesperado Totonho na cadeira. E para aqueles que acham que o que está ruim não pode piorar… O molar cariado que faltava extrair tinha um buraco tão grande que cabia a cabeça de um dedo dentro, isso sem falar, obviamente, na enorme bolsa de pus que existia na base da gengiva! Ao ver uma agulha daquele tamanho cuspir lidocaína na sua cara, o rapaz pra lá de aflito, antes mesmo que pudesse tomar alguma providência, sentiu as enormes mãos de Manelão abrirem à força a sua mandíbula enquanto seu Moisés enfiava a agulhona dentro da sua cratera em plena bolha de pus… antes mesmo de sentir a boca dormente, Totonho já se mijava todinho diante da feira inteirinha…
A extração do dente, juntamente com a hemorragia que foi desencadeada em sua boca (estancada às pressas por um punhado de borra de café usada, trazido ligeiramente por dona Justiniana – vendedora de bolos e biscoitos na feira), ficou em segundo plano. Para aquele menino da roça, avexado e raquítico, a vergonha que ele passou naquele fatídico dia superou com sobras o tormento e a dor. O que ele ainda se lembra da trágica experiência da extração dentária (depois da amnésia em que foi acometido pelo resto da sua vida) foram os gritos de zombaria dos feirantes, da roupa toda mijada que ele mesmo teve que lavar no dia seguinte, da corrida desembestada (após ser desamarrado por Manelão) com uma trilha de urina deixada pelo caminho e dos gritos da sua pobre avó, com toda aquela gordura, correr caxingando no seu encalço, chorando bem mais alto do que ele.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadra de Março de 2023
Minguante de Outono.