A DEFUNTA MAL MORRIDA!
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A DEFUNTA MAL MORRIDA!

Desde muito pequeno, quando ainda morava em Vitória da Conquista que tenho ouvido falar em catalepsia. Claro que a palavra não era exatamente esta, porém, os causos contados pelos mais velhos eram “desjeitim”. Em uma época sem o advento da luz elétrica, a principal diversão da meninada era formar uma roda em plena lua cheia e ouvir histórias tão cavernosas que nos deixavam “trancando”, tremendo de medo e a ponto de botar um ovo!

O caso mais sinistro que ouvi foi de um profanador de túmulos lá pelos meados dos anos 1960 que andava perambulando pelo Cemitério da Saudade. O cara não perdia uma sentinela. Comparecia a todos os velórios, se “esguelava” de tanto chorar em cima do morto que ele mal conhecia e seguia sempre o cortejo pegando literalmente na alça do caixão. O objetivo do indivíduo era saber em que tumba o defunto seria enterrado. Durante a noite, o malfazejo saltava o muro do cemitério e munido de ferramentas, desenterrava mal desenterrado o pobre defunto e levava o que tivesse valor.

A pobre da “Maria Boca-Rica” que o diga.  A infeliz só tinha de valor uns dois ou três dentes de ouro na boca repleta de dentes cariados, depois de morta, teve o seu túmulo profanado e os dentes violentamente arrancados por um alicate de pressão. O ladrão estava tão viciado que nem se preocupava mais em esconder as evidências dos furtos. Boca-Rica foi encontrada fora da cova, com as vestes rasgadas, com a boca troncha e completamente banguela. O grau de maldade do ladrão era assustador!

Eis que um dia morreu um rico fazendeiro que exigiu ser enterrado usando todos os seus anéis. O profanador compareceu ao enterro e diante de todo mundo, chorou copiosamente sobre o cadáver. Assim que o caixão baixou à terra, o facínora esperou a calada da noite e tal qual um felino, saltou o muro do cemitério e quebrou a sepultura na base da marreta.

Após desenterrar o corpo, retirou facilmente 7 dos 8 anéis que o defunto tinha nos dedos, devido a um inchaço no dedo indicador o último anel deu a testa, não saiu nem com reza braba, deixando o indivíduo pra lá de estressado. Após babatar por quase meia-hora, o profanador perdeu a paciência e utilizou o seu alicate de estimação para decepar o dedo do “finado”. Diante do sangue pisado que jorrava para tudo que era lado, o defunto se levantou em um salto acrobático, abriu os olhos, olhou o dedo mutilado e soltou um berro aterrador:

– Ahhh!!! Que diabo é isso? Merda! Você arrancou meu dedo, carai? – Gritou pulando de dor enquanto o embasbacado ladrão, pra lá de aterrorizado, sapecou este dedo com anel e tudo na cara do “falecido” e fugiu desembestado, pulando por cima daquela renca de mausoléus que tinha no caminho.

– Desculpa aí, seu defunto! Aí está o seu dedo, pega de volta! Descanse em paz, fique com Deus! – Enquanto o ladrão, morto de medo saltava o muro do cemitério, o defunto saltava atrás e começava aí uma perseguição ferrenha pelas ruas da cidade. O ladrão gritando na frente e o defunto berrando atrás. Por mais amedrontado que estivesse, o gatuno não conseguia se desvencilhar da “alma penada” que seguia firme no seu encalço, esguichando sangue pisado a torto e a direito. Sem saber o que fazer, o fascínora correu direto para a delegacia adentrando aos berros:

– Fui eu, eu confesso, eu confesso! O ladrão dos túmulos sou eu! – Amedrontado e diante do olhar perplexo do defunto lambuzado de terra do cemitério, o ladrão confessou todos os seus crimes.

Sim, o fazendeiro fora acometido de catalepsia, uma doença raríssima para a época. O velho foi internado e após o tratamento ainda viveu por um longo tempo. A catalepsia é um transtorno raro que impede o corpo de se mexer, mesmo com a mente em pleno funcionamento. A pessoa vê e sente tudo, porém, não consegue se movimentar. Muitas vezes é dado como morto e é até enterrado vivo. Existem centenas de relatos deste tipo aqui no Sertão da Ressaca.

Tudo o que foi narrado até agora é apenas um “introdutório” para que eu possa contar um sucedido que se deu aqui em “Candin” nos anos 2000, durante a inauguração do Hospital Municipal. Um amigo que exerce a dupla função de enfermeiro e (nas horas vagas) professor foi quem me contou. O nome deste amigo eu não revelarei nem sob tortura.

Bem, o nosso professor/enfermeiro estava de plantão no hospital quando uma senhora muito querida na Zona Rural deu entrada nas “tábuas de Moisés”. Dona Moreninha estava em um estado tão calamitoso que a família já tinha encomendado a sua alma. Quis o destino que exatamente este enfermeiro fosse o incumbido do procedimento padrão, e de acordo com o manual, a senhora foi entubada, colocada em uma enfermaria isolada e em menos de 12 horas após a internação, a infeliz veio à óbito devidamente constatado pelo médico plantonista. Confirmada a morte, foi aquele alvoroço. Chora aqui que eu choro ali, as funerárias disputando no tapa quem ficaria encarregado de fazer o traslado do corpo e logo, a pobre defunta devidamente maquiada e vestida com uma chamativa mortalha azul, foi conduzida para o seu torrão natal. Assim que o corpo chegou, metade do povo do munícipio já se encontrava no velório. Aquela comoção toda, autoridades fingindo sentimentos, desafetos trocando falsos abraços com a família enlutada, enquanto em “Candin” o jovem enfermeiro varava a noite doido pra ver o dia nascer feliz. Enquanto o jovem desenvolvia o seu ofício, começou a chegar repentinamente uma renca de pessoas acidentadas.

A maioria caíra de suas motos… braços quebrados, pernas mochiladas, pés retorcidos, clavículas fora do lugar, costas cortadas por arames-farpados e até alguns com o corpo cheios de espinhos após caírem em moitas de quiabento (ô plantinha danada)! A maioria traziam cortes profundos no rosto, braços e pernas. Quase todos em estado de choque. Jovens desfalecidas eram conduzidas em macas, trazendo nas ventas enormes chumaços de algodão embebidos em alcanfor, parentes chorosos e assustados entrando em desespero e a noite do enfermeiro que parecia ser calma e tranquila, de uma hora pra outra se transformou em um inferno. Se isso não bastasse, ainda tinha uma coincidência macabra, todos vinham da mesma região, que não por acaso, era exatamente o lugar onde a defunta estava sendo velada. Desconfiado, o enfermeiro/professor não se aguentou de curiosidade e entrou de sola:

– Gente, vocês são todos do mesmo lugar? Que diabo está acontecendo?

Diante da pergunta, um olhou para o outro, o outro olhou para o um e quando iam responder entrou o filho mais velho da falecida com um facão Guarany na mão, espumando os cantos da boca e pra lá de enfezado.

– Cadê aquele médico, fila da puta? Vou deixar aquele bosta mais retalhado que toucinho de porco barrão!

Bem, o que houve foi o seguinte: Assim que Dona Moreninha de 89 anos veio a óbito, o médico atestou a morte com a sua assinatura, e assim que o corpo passou pela funerária foi despachado para a fazenda da família. O caixão foi colocado na entrada do casarão da fazenda e como é praxe nestes velórios, as rezadeiras começaram a puxar as ladainhas, encomendando a alma da defunta:

– Pai do morto, morreu um cadáver, pai do morto! – Cantavam as rezadeiras. – Pai do morto o cadáver morreu! Que sua alma faça a passagem, pai no morto, que tenha paz e entre no céu… – Enquanto a alma da velha senhora era encomendada, os políticos faziam o que sabem de melhor, politicavam. Alguns até choravam se esvaindo em lágrimas, hipotecando solidariedade à família enlutada.

– Que pena, dona Moreninha tão cheia de vida, esticar as canelas assim de uma hora para outra. Que Deus conforte todos vocês e dê um bom lugar pra ela na casa de Deus! – Dizia o intendente. –  Ontem mesmo falei com ela, que me deu até uns chimangos. O muié pra fazer chimango gostoso! Vai fazer muita falta! Quem esperava esta mulher bater as botas assim tão de repente? – Rasgava seda o Presidente da Câmara, – Isso aqui vai ficar pequeno pra tanta gente que vai vir pro velório dela. Esta família é muito querida no município, vai ser o maior velório que esta região já viu. – Dizia o vereador da oposição, ali representando bravamente o seu partido. Enquanto o velório corria calmamente com troca de abraços e afagos entrelaçados aos choros e velas, as rezadeiras seguiam cumprindo a sua função: – Pai do morto, morreu um cadáver, pai do morto! Pai do morto o cadáver morreu! Que sua alma faça a passagem, pai no morto, e que Deus lhe conduza pro céu… – reza aqui, reza ali, reza acolá e, entre choros e velas deu meia-noite com o casarão entupido de gente. Repentinamente ouviu-se um assovio, uma rajada de vento devidamente atrelados a um suspiro desconcertante:

– Aahhhh! –  Pois é. Não foi que de uma hora para outra a velha defunta não resolveu dar uma bistunta? Foi. Se sentou no caixão, arreganhou as pernas, abriu os olhos toda assustada e gritou o nome do filho para que todo mundo ouvisse:

– Tôiiiinnnnn!

É bom que se diga que a situação virou uma zona. Gente desmaiando, gente pisando em gente, gente pulando cerca, gente passando mal, gente tentando fugir em carros, motos, jumentos, cavalos, de pés, gentes caindo, gente atropelando gente, gente se ralando nas cercas de arame farpados e o caos tomou conta do velório. Foi um fuzuê!

Desnecessário dizer que a pobre senhora fora acometida de uma catalepsia e dada como morta pelo jovem e inexperiente médico. Apesar do nível de infezação dos filhos, Dona Moreninha voltou a ser internada, desta vez ao lado de uma renca de acidentados que estavam no seu velório.

A querida senhora morreria pela segunda vez (desta vez de verdade) no dia seguinte. Conduzida e velada no mesmo casarão, as rezadeiras botaram as barbas de molho e puxaram as incelências e para evitar qualquer “mal-entendido” ficaram a uma distância considerável do corpo.

Muitos que passaram pelo susto, se recusaram gentilmente a voltarem ao velório, que desta vez, infelizmente, era verdadeiro.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Março de 2023, Lua cheia de Verão.