O MISTERIOSO HOMEM DA CAPA PRETA.
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O MISTERIOSO HOMEM DA CAPA PRETA.

Nos meados dos anos 1940, um indescritível mistério apavorava os moradores do Porto da Santa Cruz. As moças que se noivavam, antes mesmo de contraírem matrimônio eram acometidas por uma estranha coincidência. Luzia, filha de seu Artur e Dona Maria da Penha era conhecida em toda a região e a principal personagem desta época. Descontraída, loquaz e cheia de energia, a moça ajudava os pais no “Restaurante Sono Bom”, localizado no outro lado do rio. Era o tempo em que as festas de largo traziam centenas de visitantes ao povoado. Neste período o pequeno dormitório recebia caixeiros-viajantes, malandros em busca de aventuras, boiadeiros e tropeiros cansados de dormir em redes… No período da quermesse, Luzia contava com o auxílio luxuoso de dona Francisca, viúva e carola que dedicava a sua vida às obras da igreja e era muito popular no povoado, principalmente, por gostar de falar da vida alheia. Esta senhora era conhecida como a “Babadora dos Frades”, já que – rezava a lenda -, ela não aguentava ver uma batina que já ia entrando debaixo. O esporte favorito da beata era denunciar as sem-vergonhices alheias nas missas semanais quando estas ainda eram ditas em latim e na base do megafone feito de flandres. Quando chamada ao altar, a velha Francisca se empolgava e descia a ripa:

– Apois Nolasco de Zulmira, um “véi” casado e cheio de “fi” daquele, n’um anda “arrastano” as asas prus lados da pobre da “fia” de Marilene? Devia de se “invergonhá”! “Num guenta vê a minina passá que já vai tomando boca”!

De vingança, as más línguas inventavam que além da comida que fazia e da casa paroquial que arrumava todo santo dia, Dona Francisca adorava mesmo era dar banho nos “santos” padres. Tinha gente da sociedade local que só para botar fogo na história, pagava caramelos para os coroinhas abrirem o bico. Às vezes nem existiam histórias, porém, a vontade de chupar caramelos fazia que os coroinhas inventassem que por mais de uma vez pegaram a pobre beata esfregando sofregamente as costas de padre Messias – que era novinho e saltitante. Assim que ficava sabendo das histórias, a beata ficava vermelha igual pimentão e gritava para quem quisessem ouvir:

– Eu sou uma santa beata que desde a morte do meu esposo, há mais de 30 anos, nunca mais se interessou por homem nenhum. Os homens que chamam a minha atenção são as pinturas dos santos!

O discurso inflamado da velha Francisca enchia de felicidades os desafetos. Só o fato de deixá-la irritada já valia à pena. Luzia adorava dona Francisca e muitas vezes rebatia veementemente o que era dito sobre a carola.

– Que nada! Vocês são uns despeitados! Dona Francisca é uma mulher decente e temente a Deus. Vão procurar o que fazer, bando de abutres?

Na contramão destes sucedidos, um mistério intrigava imensamente o lugarejo. Primeiro foi Da Penha, menina comportada e elogiada por todos os moradores, namorou Joaquim de Esmeralda por dois anos. O jovem lavrador pensando em se casar, despediu da “parentaia” e foi se aventurar labutando de ajudante de pedreiro em São Paulo. Determinado, suava sangue dando um duro disgramado se equilibrando nos andaimes da construção civil apenas para mandar uns trocados para seu querido e velho pai através de seu Arlindo, dono do único Pau-de-Arara que fazia linha para estas paragens. Com esta grana os seus pais adquiriram um terreno e construíram com muita dificuldade, uma morada que não fazia vergonha a ninguém. Depois de dois anos chegou à carta marcando a data do casamento. Em comemoração, os familiares fizeram uma festança com direito à reisados e muito “dicumer”. Duas semanas após a festa, eis que trocando as pernas de embriagado, Jiló filho de Socorro Modista voltava “medicado” do cabaré de Ana Calanga duas e tanto da madrugada e viu – com os olhos que a terra haveria de comer – um homem de capa preta, munido de guarda-chuva e chapéu, saindo do quintal de Da Penha. Assustado e desconfiado, o bêbado seguiu o ser misterioso até o meio do cemitério quando o viu desaparecer como por encanto. Jiló podia até ser linguarudo, porém, nunca fora mentiroso. Mal nascera o dia e lá estava ele na porta do boteco de Saracura relatando o sucedido tintim por tintim. De boca em boca, dentro do limite do exagero, não é que a notícia com dois dias de atraso foi reverberar bem nos “pé-dos-zuvidos” dos pais de Joaquim? Esmeralda a mãe, fez um escândalo lascado! Gritou, esperneou, sapateou, “falou as do fim”! Nem adiantou a pobre Da Penha jurar inocência. Acreditaram mais na fofoca que na pobre infeliz!  Não se passaram nem um mês do sucedido e eis que salta ofegante do Pau-de-Arara, espremido no seu imenso corpanzil, seu Arlindo Chofer, trazendo uma carta endereçada à Da Penha. Joaquim de Esmeralda, inconsolável, rompia unilateralmente o noivado. Da Penha passou mal e foi acudida às pressas por seu Maroto da Farmácia. Ficou quase uma semana desfalecida levando chumaços embebidos em cânfora nas ventas, obrigando os parentes a trazerem às pressas o curador Nicolau lá da Vila do Poção. De nada adiantou, o casamento foi impiedosamente desfeito para o desespero da família da noiva!

Para piorar as coisas, Jiló – sabe Deus como – conseguiu uma cópia da referida missiva e passou a usar como moeda de troca no Bar de João Saracura. Deste dia em diante nunca mais passou aperto para tomar sua canjebrina. Chegava todo alinhado e já ia entrando com o peito estufado e sem pedir licença, deixando parte de um papel escrito sair algibeira afora. Dava um tempinho e lá vinha algum curioso querendo saber o conteúdo da carta, Jiló mostrava de longe já exigindo beber por conta do curioso o que se tinha de melhor no boteco. Todos os dias choviam propostas para Jiló mostrar a carta. Era gente de todo lugar pagando cachaça, conhaque, vinho gaúcho e até uísque importado. Devidamente “medicado”, o neguinho se sentindo mais importante que seu João Coletor, subia em cima do balcão e narrava com voz empostada, parecendo até seu Dezim Propagandista. Arrancava aplausos dos presentes e até algumas lágrimas dos mais sensíveis. João fiscal chorava que era uma beleza! Anália, filha do dono do boteco já deixava um lenço reservado para que ele enxugasse as lágrimas. Depois deste dia, toda noite de lua cheia podia se vir à pobre Da Penha vestida de noiva, munida de um buquê de rosas, postada na porta da igreja esperando a chegada do noivo que nunca mais apareceria por este torrão. Para desespero da família, a moça ficou doidinha de pedra.

Pouco tempo depois, surgiu outro caso semelhante com Maria de Bastiana. Esta era mais direita que prumo de pedreiro. Já de casamento marcado com Julim de Rosalina, foi surpreendida em plena sexta-feira da paixão quando voltava da missa da páscoa acompanhada da sua mãe, do noivo e da respectiva família deste. Ao abrir a porta de casa, puderam ver o mesmo homem de capa preta pulando a janela do quarto da moça e correndo em direção ao mato. Maria secou as lágrimas ao ver o desconfiado quase marido terminar o noivado. Ficou perambulando pelas calçadas por trinta dias e trinta noites até vir uma parenta próxima e levá-la definitivamente para “Belzonte”. Esta se recuperou depois de algum tempo e acabou se casando com um mineiro até remediado.

A jovem e impetuosa Luzia, buscava sem sucesso estas respostas. Quem seria aquele homem? O que ele queria? Por que todas as noivas juravam inocência? Porque ele usava sempre aquela indefectível capa preta?

Algum tempo depois Olga, filha de Honorato, marcou o noivado com Aragão. Este não era uma pessoa qualquer não, era um jovem fazendeiro filho do Coronel José da Graça e de dona Josefina Galileia. Tinha uma terra imensa na região de Itambé com o pasto entupido de gado nelore. Chegara inclusive a estudar em São Salvador, porém. admitira não ter nascido para ser doutor, preferia tocar a fazenda e duplicar as cabeças de gado da família. Já Olga crescera brincando com Luzia – a sua melhor amiga – que se alegrou muito ao vê-la aceitar a proposta de casamento de Aragão. Ficaram noivos assim que se conheceram na festa da paroquia, e após muitos tapas e beijos, parecia que enfim, um casamento como nos velhos tempos voltaria a acontecer no vilarejo. As famílias mandaram até imprimir os convites – coisa rara na época – escolhendo três bois gordos, meia dúzia de capões, porcos e perus para serem abatidos para o evento.

Faltando uma semana para o matrimônio, eis que o Coronel Jordão, padrinho do rapaz, deu uma bistunta e organizou uma festa surpresa nas “Guaribas”, convidou toda a família do noivo para esta despedida de solteiros. Luzia foi como dama de Olga. Chegaram cedo e desfrutaram de toda a hospitalidade do Coronel Jordão. Beberam, brincaram, prosearam, jogaram cartas e ao cair da noite, após agradeceram a generosidade do anfitrião, picaram a mula de volta. Quatro horas de viagem e pra lá de exaustos, chegaram à casa da noiva. Ao apearem, ouviram um pequeno barulho. Aragão pulou do cavalo e correu para a parte de trás da casa enquanto Luzia corria para o lado oposto, repentinamente deram de cara com o famoso homem da capa preta saindo da casa de Olga e correndo para o mato. Aragão gritou enquanto o homem saltava a cerca com extrema habilidade. Exímio atirador, o moço mesmo à distância, apertou o gatilho derrubando o homem que se levantou rapidamente, e mesmo ferido, fugiu para o mato. Ao ver a fuga do criminoso, Luzia correu atrás, não perderia aquela chance por nada na vida e ignorando solenemente os gritos da amiga entrou mata adentro perseguindo o misterioso homem.

– Luzia, volte, é perigoso, ele pode estar armado! – Gritava Olga desesperada. – Vamos chamar o Delegado! Volte aqui!

Apesar da bela lua que se fazia presente no céu, enxergava-se pouco dentro da mata. Determinada, a garota seguiu os seus instintos e ao ouvir um barulho atrás de uma moita deu um bote certeiro, capturando o homem pelo pescoço, que ferido e sangrando nas nádegas não esboçou reação. Luzia chegou a estranhar o comodismo do fugitivo ao ser conduzido mato afora por ela e Aragão. Ao chegar perto da moradia, Olga partiu para cima do homem e quando lhe aplicou um bofete o seu chapéu voou revelando a face oculta da pessoa que atormentara por anos as noivas do povoado.

– Você?! – Perguntou uma atônita Luzia, pasma diante do capturado! Perplexa, sentiu as pernas tremerem e por pouco não desmaiou. O homem da capa preta, ali, ferido e capturado, lhe olhando friamente nos olhos, era nada mais nada menos que… a sua grande amiga Dona Francisca. Luzia foi amparada por Olga enquanto Aragão amarrava a velha senhora de bunda pra cima no lombo de um jumento, lhe conduzindo até o povoado. Vieram jornalistas de todas as paragens para cobrir o evento. O norte de Minas enviou um jipe com cinegrafistas, retratistas e dois jornalistas e o principal jornal da capital fez uma grande cobertura. Interrogada por um delegado vindo da Vila da Conquista, Dona Francisca disse que tinha um inenarrável prazer encarnando o Homem da Capa Preta e que se divertia bastante desmanchando os casamentos e testemunhando o sofrimento das noivas! Ficou presa por quase dois anos. Quando solta, voltou ao povoado, foi expulsa da igreja pelo padre Anfilóphio e desprezada pelos moradores que lhe negavam até água. Apesar do tratamento que teve, sofreu eternamente com a ferida provocada pelo tiro. Dona Francisca virou uma andarilha-errante, mendigando por todo o Sertão da Ressaca! As más línguas contam que a velha morreu à míngua, devorada em vida pelos vermes que habitara as suas feridas. A verdade é que nunca mais se ouviu falar da famosa carola, Francisca das Batinas!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo.

Escritor e Poeta

Cândido Sales – Bahia. Quadras de Fevereiro de 2023. Lua Cheia de Verão.

Autor: Luiz Carlos Figueiredo.