A língua é o castigo do corpo
Luiz Henrique Borges
No último domingo tivemos a oportunidade de assistir a final da Copa do Mundo, no meu entender, a mais emocionante das 22 edições. Tecnicamente, a Seleção Brasileira tricampeã apresentou um futebol superior na final de 1970, no entanto, os brasileiros venceram os italianos por 4×1 e, principalmente na etapa final, dominaram inteiramente o adversário, ou seja, a partida não apresentou as reviravoltas que a final entre Argentina e França nos proporcionou.
O treinador argentino, Lionel Scaloni, deu um nó em Didier Deschamps na primeira etapa. A entrada de Dí María surpreendeu o adversário. O atleta, que costuma jogar pela direita, atuou aberto pelo lado esquerdo do ataque argentino e, enquanto teve pernas para correr, desequilibrou o jogo. O atacante argentino, além da capacidade técnica e da disposição, possui estrela. Ele marcou gols na final dos Jogos Olímpicos de 2008, na decisão da Copa América de 2021 que acabou com o longo jejum argentino de títulos e, finalmente, marcou na decisão da Copa do Mundo do Catar. Além dos gols, outro ponto em comum é que a Argentina foi campeã nas três oportunidades.
No primeiro tempo da decisão, os nossos vizinhos realizaram um monólogo. Os franceses, como afirmou o seu treinador no intervalo do jogo, não pareciam jogar uma final de Copa do Mundo. Muito insatisfeito com a atuação de sua equipe, além da bronca dada no intervalo, o treinador francês não titubeou e substituiu, ainda na etapa inicial, Giroud e Dembelé, atacantes que não se encontraram em campo.
A bronca no intervalo e as trocas melhoraram a equipe francesa que voltou mais atenta e disposta para a etapa final. Ainda assim, a Argentina controlava a partida e não passava apuros nas investidas francesas. Esgotado fisicamente, a saída de Dí María reduziu o ímpeto ofensivo da equipe sul-americana que, com a vantagem construída, procurava administrar o resultado.
Os argentinos, supersticiosos, desde que se classificaram para a final evitaram cantar vitória antecipadamente e deveriam ter mantido tal postura até o apito final. Com o time vencendo por 2X0 e faltando 10 minutos para o final, os torcedores argentinos no estádio começaram a cantar “olé” a cada troca de passes. O castigo veio rápido, Otamendi falhou e cometeu pênalti em Thuram. Dois minutos depois, Mbappé, que já havia convertido o pênalti, empatou o confronto. O destino do jogo parecia ter virado de lado.
Atordoada, a Seleção Argentina não só conseguiu se manter de pé, como também voltou melhor que o seu adversário na prorrogação. No início do segundo tempo, logo aos 3 minutos, Messi fez o terceiro gol. O título parecia voltar para a Argentina após ter fugido de suas mãos nos últimos quinze minutos do tempo regulamentar. Tivemos o duplo ensinamento durante a Copa de que uma partida de futebol só é definida quando o juiz decreta o seu encerramento. Aprendemos na própria pele, contra a Croácia, e também via os hermanos.
Faltando apenas 2 minutos para o fim da prorrogação, com a Argentina já recuada, Montiel cometeu um pênalti infantil ao se jogar na bola na tentativa de bloquear um chute do ataque francês. Frio e mortal, Mbappé marcou o hat-trick ou em espanhol triplete. Após o novo empate pensamos que as emoções viriam das penalidades. Erramos! Um novo protagonista surgiu ao lado de Mbappé e Messi. Já passados 2 minutos e 40 segundos dos acréscimos do segundo tempo da prorrogação, Kolo Muani recebeu um lançamento indecentemente livre. Ele chutou forte, rasteiro, convicto de que comemoraria em segundos o terceiro título mundial de seu país. Ele só não contava com o reflexo, a elasticidade e o pé salvador de Emiliano Martínez.
A Argentina ainda tentou um último ataque, sem sucesso. O juiz apitou o final do combate e a decisão se encaminhou para as penalidades. Como é gostoso assistir o derradeiro momento, aquele em que a tensão é praticamente palpável, quando o seu time ou seleção não está envolvido. Certamente, após a incrível defesa no chute de Muani, o confiante Emiliano Martínez já havia se transformado em uma parede sólida, compacta e intransponível aos olhares dos jogadores franceses. Se Mbappé ainda conseguiu encontrar uma brecha na muralha, o mesmo não aconteceu com Coman que viu seu chute ser defendido por Martínez. Era possível ver o terror nos olhos de Tchouaméni quanto ele se deparou com o gigante argentino. Ele acreditou que a sua única chance era arriscar o canto e o fez de tal forma que mandou a bola para fora. Messi e seus colegas não desperdiçaram as suas cobranças, desta vez não haveria reviravolta, e coube a Montiel a cobrança que garantiu o título.
O futebol jamais foi o espaço da justiça. Craques e seleções inesquecíveis como Puskás, Hungria 54, Cruyff, Holanda 74 e Zico, Brasil de 82, não ganharam o maior título do futebol mundial. Messi estava entrando para esse grupo. Apesar de sua genialidade, nas inevitáveis comparações, sempre haveria alguém que afirmaria que o craque argentino não havia ganho uma Copa do Mundo. A partir de domingo não tenho dúvida de afirmar que no panteão dos gênios, ao lado de Pelé, Garrincha, Maradona, estará o Messi.
O jactancioso Jorge Sanpaoli, treinador da Argentina em 2018, após o seu ruidoso malogro na Copa do Rússia, afirmou que os sul-americanos nunca mais ganhariam um Mundial e, se houvesse uma exceção, seria o Brasil. Mbappé, atleta que certamente fará parte do panteão dos gênios do futebol, seguiu a linha de Sanpaoli e afirmou em maio deste ano que “Na América do Sul o futebol não é tão avançado quanto na Europa. E é por isso que, quando você olha para as últimas Copas, sempre são os europeus que ganham”. Mbappé realizou uma análise superficial do futebol de seleções, talvez muito influenciado pelo o que ele vivencia quando se trata dos clubes, um abismo crescente.
Ao tratarmos de seleções ocorre o contrário. Os grandes jogadores são todos cooptados e jogam segundo os moldes praticados pelo futebol do velho continente. Como bons colonizadores, os europeus evitaram os confrontos com os sul-americanos com a criação da Liga das Nações. Não adiantou e a razão é simples, em um mundo globalizado e com os jogadores se enfrentando semanalmente não há mistérios. O futebol também passa por um processo de homogeneização e o desafio de se manter na primeira prateleira é a capacidade de produzir novos talentos e isso não falta entre argentinos e brasileiros.
“A língua é o castigo do corpo”, alertava a avó de meu amigo José Henrique. Domingo ela chicoteou, sem dó nem piedade, Sanpaoli e Mbappé. O futebol sul-americano merece mais respeito! Feliz Natal para todos.