NÃO BASTA SÓ SER “VÉI”, TEM QUE SOFRER!
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NÃO BASTA SÓ SER “VÉI”, TEM QUE SOFRER!

Autor: Luiz Carlos Figueiredo

Corria o ano de 2020, a pandemia tocava terror no mundo. Doença desconhecida em tempos de Fake News, imagine aí a equação explosiva que era?   Todo mundo morrendo de medo, e as notícias confirmando que aquela era uma pandemia criada em laboratório, cujo objetivo era dizimar a raça dos pobres velhinhos.  Durante este período eu confesso que só saía de casa para ir até o mercadinho da esquina comprar alimentos. Em uma destas minhas saídas, lá ia eu andando discretamente pela calçada quando topei com uma renca de adolescentes vindo na minha direção. Quando eu estava muito perto de passar por eles um caboclinho levantou as vistas e berrou à pleno pulmões:

– Cuidado! É um véi, é um véi! – Gritaram e correram todos para o outro lado da rua. Olhei para trás não vi ninguém, perplexo eu cheguei à triste conclusão que o tal véi que eles tanto temiam era nada mais nada menos que o locutor que vos fala.  Foi aí que percebi que além de matar os “véi”, esta pandemia ainda discriminava a tal da terceira idade. Estou dizendo isso porque de uma hora para outra o que parecia adormecido voltou a dar as caras. Depois de tanto sofrimento e da morte de quase setecentas mil pessoas, eis a “Velha da Foice” retornando violentamente montada em pelo no corcel negro da covid 19. Sim. Só que agora estamos mais preparados, nosso escudo é a vacina.

A explicação para o ressurgimento desta pandemia é a birra – ou a paixão – que faz que parte da população se neguem tomar a vacina, colocando em risco quem tem comorbidades ou que por um motivo ou outro tem a saúde fragilizada.  As primeiras infecções deste corona vírus aconteceram em dezembro de 2019 na China. Quando esta pandemia deu as caras por aqui em fevereiro de 2020 quase todo mundo achava que era uma doença fabricada sob metida para fazer os velhos partirem antes do combinado. Enquanto os idosos morriam de medo se escondendo atrás das máscaras e outros tantos, sequer, botando as cabeças para fora das suas casas, os jovens desdenhavam. Quem – na cabeça deles – iria bater a caçuleta antes da hora eram os idosos, então, pra que se preocupar? A primeira morte no Brasil só veio a ser confirmada pelo Ministério da Saúde no dia 17/3. Neste momento centenas de pacientes com suspeita de ter contraído a pandemia estavam em observação em todo país. Era a doença dizimadora dos “véi” chegando ao mundo de forma estapafúrdia.

Você está rindo porque ainda não chegou à idade dos “entas” (sessenta, setenta, oitenta). A renca de doenças que atormentam os pobres idosos é uma festa. Asma, bronquite, reumatismo, miopia, pressão alta, dor nos quartos, surdez, espinhela caída, alzheimer, parkinsom, diabetes, osteoporose, infecção urinária e até gogo… Se já não bastasse tudo isso ainda tinha que aparecer mais? Pois é. Se a vida dos “véi” já não era fácil, vem lá dos confins da China esta coisa completamente desconhecida?  Desde que o mundo é mundo que a vida dos “véi” é um tormento, não faz outra coisa a não ser sofrer! Quem aí se lembra de quando diziam que velho só servia para se fazer sabão! Qualquer crise, qualquer problema, qualquer coisa, sobra pra quem? Pro diabo do véi! Ô classe disgramada de sofredora!

Quando pequeno eu imaginava que quando eu estivesse com meus 50 anos eu estaria andando de bengalinha, pedindo a ajuda dos netos pra me locomover. Cheguei aos 64 achando que ainda sou um rapazola! Pelo menos a cabeça age desta forma. Dizem que nos hospitais, entre um velho e um novo – ambos entubados -, se tiver que se escolher entre um e outro, sobra pra quem? Não fazem nem par ou ímpar. Sobra diretamente para o tal do véi.

Vou confessar uma coisa pra vocês, quando novo, sempre morri de medo de envelhecer. Incomodava-me ser chamado de “Senhor”, das pessoas falarem: “Cuidado aí com o velhinho”! Cresci ouvindo que a velhice era o pior estado do ser humano! É ruim, porém, não é assim também da forma que dizem. Ainda não senti o peso dos anos. Nasci em 1958 e ali nos meados de 1967, aqui mesmo em Nova Conquista, com nove anos de idade, testemunhei Zé do Sindicato – a pedido do Padre Pedro Callegari – começar a criar um movimento para aposentar os idosos de nossa cidade. Pega um nome aqui, outro ali, preenche uma lista aqui, faz uma reunião ali, declaraçãozinha aqui e de repente não inventaram que a coleta daquelas assinaturas – a maioria com o dedão estampado através de uma digital – serviria apenas para transformarem os pobres velhinhos em carne de jabá? Pois é. Teve gente que acredita nisso até hoje. E para piorar, na época ainda existia na cidade de Itaobim (Minas Gerais), aqui bem pertinho, uma charqueada que fazia dos pobres jegues da região um amontoado de charque. De uma hora para outra, mesmo a gente testemunhado o sequestro dos pobres jumentinhos – capturados à força e jogados selvagemente em cima dos carros de conduzir bois – ainda tínhamos dúvidas se aquela carne deliciosamente prensada era ou não dos pobres velhinhos que queria apenas se aposentar?

Na época foi um furdunço! Uma gritaria lascada, protesto, os velhinhos se reuniram e quiseram quebrar Zé do Sindicato no pau que só se safou com a providencial ajuda do Padre Pedro que o escondeu dentro do Salão Paroquial! Só quando começaram a sair os primeiros recursos financeiros do Funrural que os véi se acalmaram e deixaram em paz o coitado do Zé! Em 2019, com a chegada do covid houve também a potencialização das notícias falsas através da globalização via internet. Como ainda não existia as vacinas, ficávamos só imaginando como seria morrer de uma doença que causava febre, tosse, falta de ar e atingia todas as classes sociais, priorizando, obviamente os velhinhos que também eram portadores de doenças graves!

Claro que não é a primeira e nem será a última enfermidade a atazanar a vida deste povo, porém, nas décadas passadas contávamos com as artimanhas dos “propagandistas” armados de malas, cuias, cobras e microfones, vendendo a preços módicos nas feiras livres a famosa banha de jiboia que – segundo eles – curavam tudo quanto há -, inclusive as enfermidades conduzidas por tosses e espirros. Durante a pandemia até as feiras deixaram de existir, o diabo do vírus não permitia! Além da falta de trabalho que os autônomos deixaram de ter, itens básicos deixaram de chegar às mesas dos pobres. Resumindo, nada era tão ruim que não pudesse piorar! E assim, diariamente testemunhávamos os pobres velhinhos morrendo sem poder trocar, sequer, um dedo de prosa, jogar seus palitinhos, seus baralhinhos, abraçar os netos e até tomar sua cachacinha devidamente regada às piadas engraçadas, passando a ficarem aquartelados de quarentena em casa, tendo que usar álcool em gel ou lavar as mãos dezenas de vezes por dia em um indescritível temor. É… a covid-19 potencializada pela falta de informação se transformou em uma equação mortal!

Mas, vamos até o ano de 1968 quando existia aqui na nossa cidade um casal de velhinhos muito simpático. Não tinha filhos, viviam confortavelmente da aposentadoria de ambos e eram muito queridos no meio em que viviam. De uma hora para outra seu João Carrapicho não sumiu misteriosamente de casa? Sumiu que não houve cristão que soubesse do paradeiro do pobre senhor. O pior que este sucedido foi em plena crise da charqueada, onde as más línguas (tem gente que pensa que o fake News nasceu agora) saíram espalhando que o pobre coitado tinha se transformado em uma manta de carne do sertão! Olha que Dona Mulatinha gastou o que não tinha, pagando para as pessoas informarem para onde tinha ido o seu velho e querido marido.

Diariamente a pobre senhora secavam as lágrimas de tanto chorar e nada do velho senhor aparecer. Passou-se um ano e nada de notícias de João Carrapicho. Dona Maria Mulatinha depois de procurar pelos quatro cantos da região entrou em uma crise de desespero que deu até pena. Por mais de uma vez foi arrastada à força da tenda de Matias de Tenório agarrada a uma manta de carne de charque gritando a pleno pulmões:

– Olha aí no que meu véi se transformou! Fizeram jabá do pobre bichinho! –

– Não é não, Dona Mulatinha. Isso é carne de jegue prensada! Não é seu João Carrapicho não. – Diziam os vizinhos tentando acalmá-la. – Não é o que? Oí o cheirinho dele. Mataram o meu véi e fizeram carne do sertão do “bichim”! – Dizia entre lágrimas!  Exagero à parte, foi necessário até a presença do Padre Pedro para fazê-la entender que o povo daqui conversava mais que a boca e que aquilo era apenas carne de jumento! – Se acalme Dona Maria eu fui pessoalmente lá na charqueada e comprovei com estes olhos que a terra haverá de comer que esta é carne de jumento. Ninguém mata véi lá não. Acredite como existe Deus no céu!

Após chorar por mais de um ano, acender uma renca de velas e adquirir uma incontrolável depressão, não é que Dona Maria Mulatinha – que tinha um “pé de meia” até bem arrumado – de uma hora para outra não arranjou um pretendente? Pois é. O viúvo Zezé de Malaquias, um malandrão saltitante, cheio de dentes de ouro na boca botou preferência na chorosa viúva e após dois meses de um namoro “mal-ajambrado” marcaram o matrimônio.

A partir do momento que começou a namorar, dona Mulatinha se transformou em outra mulher. Emagreceu, passou a andar toda empetecada com os cabelos escovados, a boca pintada, a cara lambuzada de ruge e carmim e toda sorridente. Eis que chega o grande dia e ali diante dos olhos de Deus e da presença dos homens ali representados pela metade da população da cidade, espremida dentro da pequena igrejinha, quem adentrou de mala, cuia, chapéu e guarda-chuva bem na hora que Dona Mulatinha ia dizer o sim? Ele mesmo, João Carrapicho, o marido sumido!

– Gente, “vancêis” pode me dizer por onde anda Mulatinha? Nossa casa tá fechada e eu bati até doer a mão, o que está acontecendo aqui? –  Nem preciso dizer à gritaria que foi dentro desta igreja com gente saltando janelas, atropelando o Padre e até desmaiando!

O que aconteceu foi que ao atravessar a rodagem que divide nossa cidade, o velho Carrapicho foi atropelado por uma marinete e após ser socorrido e levado para um hospital de Vitória da Conquista ficou mais de um ano com amnésia, se esquecendo completamente de quem era! Ao recuperar a memória, se lembrou de voltar pra casa exatamente no dia em que a sua querida esposa iria se matrimoniar com Zezé. A chegada de João em grande estilo causou o maior alvoroço.

Antes mesmo de tentar explicar o sucedido, levou uma sova violenta da quase viúva e todo o desprezo do frustrado Zezé de Malaquias. Mesmo apanhado, João ria de felicidade, afinal de contas, voltava depois de muito tempo para a sua amada e querida Mulatinha, onde viveriam o resto das suas vidas felizes para sempre.

Apesar de tudo isso, a única certeza que ficou foi que… o tal do véi sofre, por mais que não queira, nasceu mesmo foi pra sofrer!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales – Bahia. Quadras de Novembro, 2022. Crescente de Primavera.