E TUDO VIRA DESEJO!
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E TUDO VIRA DESEJO!

Autor: Luiz Carlos Figueiredo

Cidade pequena é de lascar! Existe cada figura que só Deus na causa! Reza a lenda que Cândido Sales sempre foi uma cidade atípica porque só tem artista por aqui, bandido passa bem longe deste torrão. Há algum tempo, todo mundo que vivia por aqui era meio que metido à mocinho. Uns se achavam bonitos, outros ricos, outros lordes… a maioria metida à conquistador… todos tinham apenas uma coisa em comum, eram excessivamente mentirosos. Ô “lugarzim” danado pra ter gente exagerada! Bastava você dar um ou dois passos para bater de frente com algum contador de vantagens. Em “Candin” todo mundo tem uma história pra contar e, geralmente, só levam vantagens nelas – taí Zé Carlos da Coelba que não me deixa mentir!

Ali pelo final dos anos 1990, o maior fanfarrão destas bandas se chamava Rosemiro Mamulengo. Pense em um cabra garganteiro, que se dizia rico, bonito, inteligente e era “namoradorzim” feito o diabo! Sim. Na visão dele era tudo isso e muito mais. Só que na vida real, Mamulengo era apenas um baixinho, meio escurinho, do cabelo duro e escovado, mentiroso feito a peste e todo metido a namorador. Usava uns óculos escuros que segundo ele, era o charme que completava a sua beleza, que somente os puros de coração seriam capazes de captar! Andava pelas ruas tropicando nas próprias pernas, usando uma camisa de malha e uma calça coringa desbotada, combinando com as suas velhas botinas de couro. A prosa de Rosemiro era tão ruim que chegava a doer os ouvidos. Só abria a boca pra contar vantagens. Quando ele chegava ao recinto, todo mundo já sabia… Lá vinha Rosemiro e as famosas fanfarronices.

– Vocês estão falando de Luzia de Tonha? Peguei ontem e dei o maior amasso. Não conte nada pra ninguém, porque comigo é assim, boca de siri…

A lista de garotas que Mamulengo enchia a boca para dizer já ter traçado era um escândalo! Todo mundo sabia que era mentira, porém, ninguém se atrevia a desmentir o fanfarrão, até porque, a única coisa concreta que existia no famoso histórico amoroso de Rosemiro (e isso ele não contava nem sob tortura) fora o mico que ele pagou quando levou uma renca de travestis à festa de aniversário da mãe do seu amigo Fonseca. Mais iludido que gato perante reflexo de espelho, Mamulengo só veio cair em si quando as suas “amigas” tiveram as suas verdadeiras identidades reveladas, provocando o maior furdunço na casa de Dona Loura. A briga terminou com Rosemiro e as “meninas” caindo literalmente no pau e por tabela quebrando todos os móveis da casa da pobre senhora em uma briga apoteótica. Sempre que o fanfarrão passava do ponto com as suas mentiras, a turma lembrava logo da história dos travestis, deixando o papudo mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta. Pois é. Este era Rosemiro, o cara que quando descobria alguma festa em casa de amigos, era o primeiro a chegar e o último a sair.  Se era zero oitocentos era com ele mesmo.

Eis que um belo dia, lá foi ele se auto convidando para participar da festa que aconteceria no enorme casarão que um destes amigos possuía no povoado do Porto de Santa Cruz.  A festança era em homenagem a alguns amigos cariocas que pela primeira vez visitaria a Bahia e nada melhor que começar no lugar que historicamente, era a ligação entre o sul e norte do país.

No dia e horário marcados, adivinhe quem foi o primeiro a chegar no belo casarão? Ele, óbvio!  Chegou e já foi entrando e até se desculpando por não ter chegado antes. Sentou-se na melhor mesa, comeu da melhor carne, bebeu o melhor whisky e passou a contar vantagens para os poucos que se encontravam presentes, testemunhando a chegada dos demais convidados.

Já meio alto devido à fartura de bebidas disponíveis na festa, Rosemiro butucou os “zóios” pra cima de uma destas galegas de capital. Ah! Pense aí em uma mulher bonita? Quase dois metros de altura, pernas torneadas, escovada, maquiada, bem-vestida, dentes brancos, boa prosa, enfim… moderna demais para uma cidade tão chocha como a nossa.

Enquanto a moça era apresentada pelo dono da casa como uma carioca amiga dos amigos que viera conhecer a tão falada Bahia, Rosemiro não tirava as vistas de cima dela. Pirou na espontaneidade da jovem que por sinal, era Veronica o nome da criatura.  Enquanto a música rolava, todo mundo dançando coladinho e a linda Veronica dando o seu show na pista improvisada, dançando fogosamente e jogando a imensa cabeleira loira de um lado para o outro, exalando o seu inebriante perfume em direção às treinadas narinas de Mamulengo. Diante do som turbinado, especialmente contratado para este fim, a garota ia delicadamente se soltando, bailando, rebolando, rodopiando e tomando tudo que era bebida que lhe aparecia pela frente. No céu estrelado, a lua cheia romanticamente dava o tom que a incontrolável libido de Mamulengo precisava naquele instante, contrastando suavemente com a gostosa brisa que insistia em afagar delicadamente o lindo rosto da carioca.

A experiencia do fanfarrão como pegador, era extremamente limitada, contrariando completamente o que ele saía arrotando diariamente, porém, não poderia deixar aquela linda galega cair em mãos alheias. Desesperado, Rosemiro virou uns dois copos caprichados do whisky importado que era servido, demorou um pouco para que bicho fizesse o efeito desejado e munido de uma indescritível coragem resolveu investir todas as suas fichas na bela, embora, sabendo que ela era muita areia para o seu “baqueleleixo”. Dançar nunca fora o forte de Rosemiro, porém, nesta noite ele precisava mostrar serviço e após entrar na improvisada pista, resolveu receber o espírito delirante de Elvis Presley e passou a dançar todo desconjuntado, jogando a bunda prum lado e o pescoço pro outro.  A dança de Rosivaldo Mamulengo foi tão exótica que logo só restaram ele e a linda carioca na pista. Os amigos, incrédulos e enciumados, ficaram todos olhando de longe, desolados. Se isso ainda não bastasse, logo passaram a dançar coladinho, rosto com rosto, corpo com corpo, com os braços entrelaçados, fazendo que Rosemiro passasse a se achar o rei da cocada preta. Beija aqui, aperta ali, belisca acolá e a noite foi passando rápido demais para Rosemiro e pra lá de lenta para a renca de amigos que não se conformavam com aquela inusitada conquista.

– Benzinho, aqui está muito desconfortável, vamos dar uma saída? Vamos olhar o reflexo da lua nas águas pardas do rio? Vai ser romântico, vamo lá! – Sugeriu a galega quando os ponteiros do relógio de parede avisavam que eram mais ou menos meia-noite. Todo mundo “medicado”, os casais já se acomodando pelos cômodos da casa, a louraça já subindo pelas paredes de desejo e os amigos que sobraram, mortinhos de inveja, rogando tudo que era praga na cacunda de Rosemiro e da jovem.

– Vamos, querida! – Falou Mamulengo se abraçando à galega deixando os invejosos espumando os cantos da boca. Logo, começou uma intensa noite de amor. Ali diante da claridade da lua cheia e do frescor das águas pardas que corriam incessantemente, o casal despiu-se das roupas e nus como nasceram adentraram a água e passaram a se amar em meio ao rio. Beijos, lambidas, apertos, chupões, abraços, contorcionismos e gritos incontidos, a garota – moderna como era – pediu para Rosinha descer-lhe o rei.

– O que?

– Me bata porra! – Insistiu a galega!

– Não. Eu não gosto disso não. Lhe bater por quê? Está tão gostozinho assim e você não me fez nada, por que que eu devo lhe bater?

– Me bate caralho, você não é homem não, porra? – Gritava a garota, agora já completamente descontrolada. Para não parecer um ignorante, Mamulengo desceu o malho. Pelados, trocavam carícias e sopapos. Como, até aquele dia, o fanfarrão desconhecia completamente o que viria a ser uma experiência sadomasoquista, acabou tomando gosto pela coisa, e o que era apenas para aumentar a libido se transformou em uma surra violenta.

– Me bate, desgraçado! Me bate, safado! Me quebre toda! – Gritava a louraça, e Rosemiro tome porrada! Quando percebeu, a garota estava mais quebrada que arroz-maranhão. Olho inchado, dente quebrado, hematomas pelo corpo inteiro, boca sangrando, tufos de cabelos jogados pela beirada do rio e os moradores do porto completamente desnorteados. A galega gritou tanto que acordou o Porto “inteirizim”, ninguém pregou o olho naquela noite.

No dia seguinte, os amigos conduziram a jovem logo cedo para Cândido Sales, onde foi medicada em um posto de saúde, enquanto parte do grupo escondia Rosemiro dos olhares curiosos. Metade dos moradores queria porque queria saber o que havia se sucedido, o que foram aqueles gritos no meio da noite? Ninguém explicou absolutamente nada.

O que realmente ficou foi a frase de seu Nenzim, antigo morador do Porto de Santa Cruz, que se levantou da cama bem cedinho, procurou o bar de Coisa Faé – que na época morava e comercializava no povoado -, que também já estava acordado e comentou, com a cara mais safada do mundo:

– Cê viu, Coisa?

– Se eu vi? Seu Nenzim, a nega gritou a noite todinha! Nunca vi alguém gostar tanto de apanhar! Pensei até que ela fosse morrer! Que coisa horrível!

O velhinho botou a mão no queixo, ficou sério por alguns minutos, e falou, com a voz trêmula antes de seguir para a beira do rio:

– Nem em “Sumpalo” eu vi uma coisa dessas! “Este pessoá do mato está se acivilizano”, “num” tá? Se eu “num” tivesse “uvido” “cum” essas “oreas” que a terra há de comer, eu “num criditava” não. Vade Retro, Termolino!   – Falou o velho morador se dirigindo com o seu inseparável anzol para a beira do rio.  Sem querer, Rosemiro Mamulengo praticou abertamente a primeira cena sadomasoquista do Porto de Santa Cruz. Assunto que ficou ressoando na cabeça dos moradores por anos a fio.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

CSales, Ba. Quadra de Setembro. Minguante de inverno.