A CASA DA CANDEIA ENCANTADA!
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A CASA DA CANDEIA ENCANTADA!

Autor: Luiz Carlos Figueiredo

Quem chega ao povoado do Porto e ver aquele pequeno povoado do lado de cá do Rio Pardo, sequer, imagina que do lado oposto existia um lugarejo pra lá de movimentado. Até meados dos anos 1950 o Porto só chamava a atenção pelo “fervilhamento” da feira semanal, pelas missas rezadas na pequena igrejinha, pelas quermesses organizadas pela Paróquia de Nossa Senhora das Vitórias e pelos personagens marcantes que existiam na localidade.

Do outro lado existia o famoso cabaré de Ana Calanga que turbinava os finais de semana levando prazer, diversão e alegria para o povo.  Era o ponto preferido dos maloqueiros, damas da noite, boêmios, pinguços, malandros, mendigos e afins! Assim que caía a noite (para desespero das senhoras casadas) acontecia a “farra de um lote de vagabundos”, tomando proporções incalculáveis quando da chegada das sensuais “mariposas importadas” de todas as regiões do Brasil, mostrando suas carnes tenras, seus cabelos longos, suas roupas extravagantes e suas pinturas carmins! 

Neste tempo, se alguma moça fosse “tirada de casa” (se dizia das meninas que perdiam a virgindade) ou algum malfazejo lhes fizessem “mal”, a desonrada era acolhida no famoso bordel, onde – após um breve treinamento – passavam a desenvolver uma nova vida, leiloando diariamente o próprio corpo à preços módicos, para quem pudesse se interessar.  Quando essas jovens chegavam, tudo se transformava em festa. Os habituês (leia-se: malandros, jogadores. gigolôs e marreteiros) desprovido de grana, abriam espaço para que a nata da sociedade portuense “devorassem impiedosamente as suas presas” fazendo até fila na porta do cabaré. Neste “evento” o que mais se via eram os coronéis levando seus filhos para serem livremente “desdonzelados” pelas lindas e meigas garotas. Como nada vem de graça, toda noite o samba corria solto na famosa “Casa da Candeia Encantada” – apelido que deram ao bordel. Ali se cantavam e dançavam até o raiar do dia. Obviamente não existia luz elétrica na região, o nome do cabaré era uma alusão aos candeeiros coloridos que iluminavam o lugar lhe dando uma aparência surreal.

Este era um tempo em que davam por estas bandas um ou outro artista solitário, completamente na miséria, seguindo o seu destino em direção ao sul do país, onde apostaria na sorte buscando ser reconhecido e ganhar alguma fama. Geralmente chegavam puxando uma cachorrinha, com a cuia na mão e com a barriga colada no espinhaço. No desespero, sempre davam uma canjinha. Foi o que aconteceu com o repentista “Azulão”, que era músico e boêmio. Chegou meio que por acaso ao povoado, ficando quase um mês se apresentando no dito cabaré. O “malandro”, quando percebia o ambiente lotado de fazendeiros, improvisavas umas rimas rasgando seda para os ricos coronéis. Chovia tanta grana no palco que Azulão enchia os bolsos, o chapéu coco que usava, e até a cueca.

Quando não tinha “atrações” de fora, encaixavam-se os “artistas” da terra. Um dos mais afamados era “Negro Pilão” que tinha a rara habilidade de tocar prato e assoviar acompanhando a garganta privilegiada de Avelino Boa-Voz que entoava as mais românticas páginas musicais. Ali, no auge da empolgação, Negro Pilão chegava a atender um pedido ou outro assoviando com maestria uma antiga canção intitulada “O Tema de Laura”. As “moças de vida fácil” se esvaiam em lágrimas!

Veríssimo da Sanfona era outro artista local que se apresentava na famosa casa de espetáculo. Tocava tão bem que era considerado um virtuose. Fazia bailes inteiros tocando Zé Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino e Luiz Rei do baião! Nas noites de Veríssimo, quem comparecia era a alta sociedade. Ana Calanga se esvaia em felicidades ao ver o cabaré lotado até os beiços turbinando o consumo do rum importado da Argentina. A apresentação de Veríssimo só não era perfeita devido ao pandeirista que o acompanhava. Areré era um negro todo pra frente! Reliento, saltitante, bem apessoado e que se apresentava calçando um par de “butina de couro cru”, um paletó de linho branco desbotado, combinando com a calça cáqui (folgada demais para ser dele), e, para ficar ainda mais incrementado, usava na cabeça uma espécie de boina vermelha que escondiam os seus cabelos duros. O negro era um capeta com o pandeiro na mão! Era tão bom, que muitas vezes Veríssimo o deixava fazer um solo de mais de dois minutos. Gostava tanto de tocar nas boates que acabou ganhando o sugestivo apelido de “Piolho-de-Cabaré”! Apesar de parceiros, Areré achava o sanfoneiro, muito mulherengo, cachaceiro e metido a sebo. Veríssimo achava Arerê um excelente músico, porém, detestava tomar banho! Sim. O negão ojerizava água! Quando ia se apresentar, trajava-se do seu indefectível paletó (o único que possuía), empapuçava-se de água de cheiro para disfarçar o fedor e saía saltitante pelas ruas. Banho que era bom, neca! Como tinha que tocar no outro lado do rio, o músico exigia à presença de um canoeiro exclusivo para lhe conduzir. Quando por um motivo ou outro a canoa falhava, Areré dava mais voltas que amante de mulher comprometida, e, pulando de lajedo em lajedo (como um bode na caatinga) conseguia chegar ao destino suado e ofegante.

Lá dentro, depois de meia hora de “samba”, com o cabaré mais lotado que igreja em dia de casamento, o negro começava a suar… menino… não tinha cristão que aguentasse o fedor. A catinga era tão medonha que embrulhava o estômago do infeliz que estivesse por perto. Era um fedor disgramado de carniça, misturado à vômito de bêbado corneado, com pitadas de fezes secas, recheadas com chulé de estudante… Depois de algum tempo com o povo dançando, o “poeirão” subia e ninguém – por mais embriagado que pudesse estar –, conseguia ficar mais que dois minutos dentro do salão. O fedorzão era sentido do outro lado do rio.

Veríssimo até já estava acostumado com o fedor, porém, muitas vezes terminava a sua apresentação tocando com uma mão (e tampando o nariz com a outra) sem um pé de pessoa dentro do salão! Diante do problema foi o jeito um grupo de “notáveis” (fregueses assíduos) que gastava uma nota com as garotas, insatisfeitos, procurarem Ana Calanga e fazerem uma reclamação formal. Esta por sua vez, procurou Veríssimo, que por sua vez reclamou com Areré. Pra que foram falar? O negão se retou e soltou os diabos pra cima de quem reclamou!

– Não tomo porra de banho nenhum! Não tomo e não tomo! Prefiro largar meu pandeiro que tomar banho! – Gritou o arretado “criolo”.

– Mas Areré … – Contemporizou o sanfoneiro com uma calma budista. – É só um banho, meu amigo! Eu faço questão até de esquentar a água pra você. Não precisa nem tomar um banho completo, basta dar uma lavadinha nas partes principais, que pedaço vai tirar?  É que o povo que está reclamando. É deles que vem a “bufunfa” que você ganha tocando o seu instrumento. Que mal há nisto?

– Gosto muito de você Veríssimo, mas, banho eu não tomo! Não tomo! E não tomo! Prefiro deixar de tocar! – Areré tinha os defeitos dele, porém, sabia mais que ninguém que era humanamente impossível fazer um forró sem o auxílio luxuoso do seu pandeiro. Diante do impasse, Verissimo viu-se obrigado a demiti-lo imediatamente ao tempo em que Ana Calanga importava diretamente da Vila do Poção outro exímio panderista, conhecido pela alcunha de Totoin.

O poçoense ficou hospedado durante uma semana inteirinha na Casa da Candeia Encantada usufruindo do que tinha de bom e do melhor. Churrasco, cachaça, massagem, cafuné, “rodízio de mariposas” e por aí ia. Eis que chega o grande dia da apresentação de Veríssimo com o seu novo panderista. Logo cedo a casa ficou lotada, Ana Calanga e suas meninas distribuindo simpatia, trajando roupas pra lá de coloridas e, filas imensas de clientes vindos de toda região. O sanfoneiro não muito satisfeito com a situação, encheu a cara enquanto esperava a hora da apresentação.

Morrendo de inveja – mas sem querer dar o braço a torcer – do outro lado do rio, devidamente escondido em uma moita, lá estava Areré observando o movimento. Passara várias noites em claro pensando na parceria desfeita.

– Ah, se eles estão pensando que vão se ver livre de mim deste jeito, estão muito enganados. Areré não é homem de fugir da batalha, eles vão me pagar! – Prometia o negão enchendo a cara de meizinha, bebendo diretamente no gargalo. Gente vai, gente vem, aquele movimento danado e lá pras tantas com o recinto entupido de gente, Veríssimo completamente mamado deu de puxar a sua concertina e o famoso panderista Totoin passou a castigar o couro do pandeiro, distribuindo ritmos para todo os lados com uma imensa categoria. Além de tocar, o poçoense dançava o tempo todo deixando a plateia ensandecida.

Do outro lado do rio, o negro Areré ao ouvir o toque da sanfona que ele conhecia tão bem e perceber que o panderista Totoin era tão bom quanto ele, teve uma crise de infezação e após tomar mais duas talagadas de cana, bêbado feito um gambá ficou quase uma hora correndo, dando cambalhotas e jogando capoeira na beira do rio e quando estava todo suado e com o fedor pra lá de apurado, deu de entrar sem camisa no meio do salão completamente lotado. O primeiro a perceber foi Veríssimo que mesmo “medicado” conhecia aquela caatinga à quilômetros de distância. Quando o negro entrou, o fedor bateu e com as portas da boate fechada foi um Deus nos acuda! O fedorzão subiu sufocando um monte de gente. Mulheres gritando, gente correndo, pessoas sendo pisoteadas e o primeiro a correr tampando as narinas foi Totoin, que sabe Deus como, conseguiu escapar por uma janelinha que mal cabia a sua cabeça. As portas foram quebradas e só se viu gente correndo para o lado de fora tentando respirar, enquanto, indiferente a tudo o que acontecia e completamente moqueado, Veríssimo continuava tocando calmamente, usando apenas uma das mãos. Areré chegou devagarzinho, olhou de soslaio para o salão completamente vazio, apanhou o instrumento que Totoin largara no chão e cheio de munganga tocou até o dia clarear fazendo a maior apresentação da sua vida ao lado do seu sanfoneiro de estimação. Naquela noite nem mesmo Ana Calanga voltou pra casa, o fedor pesteou toda a região e era sentido de longe.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

CSales, Bahia. Quadra de Agosto. Nova de Inverno de 2022.