SIVALDO, O DELEGADO DO PORTO.
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SIVALDO, O DELEGADO DO PORTO.

Semana passada escrevi sobre as aventuras do Bardo Geraldo Sol no Porto de Santa Cruz. Ao citar o falecido “Delegado Sivaldo”, muita gente (para minha surpresa) se lembrou do caboclo que tinha a cara do Porto! Sivaldo era uma espécie de referência, meio que “chefe” daquela comunidade e se impunha aos “locais” na base da força. Pouca gente tinha coragem de contrariá-lo, mesmo ele sendo fisicamente limitado. Além das duas muletas que ele usava para se locomover – e de vez em quando dar uma pêa em algum desafeto – ainda levava à tiracolo um velho colt 45. Quando amanhecia enfezado acordava os moradores atirando a esmo.

No ano de 1989, os fins de semana do Porto recebiam um lote de gente que iam fazer piquenique às margens do rio Pardo. Íamos em um grupo de amigos da Cocebe (Mercado que pertencia a Oriston Mendes), eu, Valmir Moreira, Nivaldo Gavião, Valtenor, Lola, Tim e mais uma renca de colegas. Assim que a gente se alojava em cima de algum lajedo, lá vinha Sivaldo caxingando, amparado em seu par de cacetes. Chegava (sempre muito educado), se sentava, depois de muita insistência aceitava um ou outro pedacinho de carne assada, gostava mesmo era da destilada que ele tomava com gosto. Depois da terceira ou quarta dose, o caboclo começava a jogar conversa fora. Tinha um orgulho danado de falar das brigas que já tivera (sempre contando vantagem), dos valentões que ele quebrara no pau e do respeito que ele adquirira na Vila Joaniza em São Paulo, onde ele jurava existir uns dois ou três primos carnais comandando o braço de uma poderosa facção paulista. Em uma destas prosas, Gavião já completamente medicado cismou de dizer na cara de Sivaldo que ele era mentiroso. Ah, pra que? O caboclo virou “as do fim”! Meia hora de bate-boca depois falou espumando:

– Oia Gavião, “vancê” tá pensando que é mais “home” que os “ôtos”? “Vô” só dá uma letra pra “vancê”, fica ligado. Eu sei que “ancê” anda viajando mundo afora levando madeira pra vender. Vou só passar a placa do seu carro pros meus primos lá na Vila Joaniza pra eles “dare” um corretivo “n’ocê”!

– Eu lá tenho medo de seus primos, Sivaldo? Se eles aparecerem na minha frente eu corto todo mundo na bala! – Gavião bêbado ficava todo valente. Sivaldo não gostou do que ouviu e se retirou enfezadíssimo deixando Gavião com uma pulga atrás da orelha. Após passar uma noite em claro, mal o dia amanhecera e lá estava Gavião na porta de Sivaldo pedindo desculpas.

O poeta e cantador Rosemberg Oliveira sempre gostou muito do Porto de Santa Cruz. Em 1990 quando o Arte & Manhas produzia o IV RIO PARDO FESTIVAL de música regional aqui em “Candin”, trouxemos o cantador EDIGAR MÃO BRANCA para fazer o show de encerramento. Na época o nosso grande forrozeiro ainda não trilhava os caminhos do forró, embora, já fosse um excelente artista. Acabava de lançar o disco de cantoria DA TERRA FIRME UM CANTO FORTE pela Gravadora Alemã Ariola, com uma capa lindíssima de Romeu Ferreira e a Produção de Cao Alves que também participa como músico e arranjador do disco. Rosemberg insistiu para que levássemos o cantador até o Porto de Santa Cruz. Eu, ele e Mão Branca fomos a bordo de um velho fusquinha 1975 que o (futuro) forrozeiro possuía e que fazia uma poeira lascada na estrada de chão batido. Me lembro da satisfação de Berg com a aprovação de Mão Branca ao nosso patrimônio histórico. Adorou conhecer o lugarejo (bastante descaracterizado hoje em dia).

Muito tempo depois, voltei com Rosemberg ao Porto e caí na bestagem de apresentá-lo a Sivaldo. Em pouco tempo se transformaram nos melhores amigos. Sivaldo ficou incumbido de levar o cantador a um poço secreto onde – segundo ele – existiria uma diversidade de peixes que metia até medo!

– Quero pegar uma traíra grande! – Sugeriu Rosemberg que foi conduzido em meio à um espesso matagal.  – É aqui, ó! Este poço só tem elas”! Agora tenha cuidado porque se você cair aí dentro não sai nunca mais! – Disse Sivaldo, tocando terror. Três horas depois a dupla voltou completamente moqueada com Sivaldo rolando de tanto rir.

– O cara veio pescar com isca de carne fresca? Queria pegar o que? – Realmente, pescaram a manhã inteira e pra não perder o tempo – durante a pescaria – secaram uma “meiota” de canjebrina que Bergão sempre trazia na capanga. Passaram o resto de tarde proseando e Berg mesmo “medicado” aproveitou para musicar uma letra que eu tinha começado a escrever…. Nasceria aí FALAS E CANTARES DO MENESTREL DO SERTÃO, música lindíssima que fará parte do seu próximo disco. A partir desta data sempre que eu ia ao Porto e encontrava Sivaldo ele perguntava:

– Cadê o cantor, aquele pescador de meia-tigela?

Depois de alguns anos de seca, o Rio Pardo deu uma bistunta e provocou uma das maiores enchentes da história. Rosemberg veio “decretadamente” de Conquista apenas para que pudéssemos testemunhar este evento. Quando chegamos ao povoado contemplamos aquela imensidão de águas pardas inundando tudo quanto há.  Era o dia que – como diz Elomar – o Pardo urrava valente! Assim que chegamos, a primeira cara que vimos foi a de Sivaldo. Quando ele soube que iríamos atravessar o rio para que Berg pudesse ver o povoado que estava completamente alagado e que se escondia na margem oposta ele se invocou de querer ir.

– Rapaz, o rio está cheio! Não atravesse não! – Disse eu temeroso.

– Ah, estou acostumado com o rio assim, e comigo lá ninguém “bole c’om cêis”! – Rosemberg deu uma gargalhada e disse zombando:

– Quem está precisando de sua proteção, Sivaldo? Você não está aguentando nem com você mesmo! – Enquanto atravessávamos o rio com a água dando no nosso peito, Sivaldo localizou dois rapazolas correndo no outro lado do rio e abriu o berreiro:

– Leitão, fila da puta! Vem aqui, “carái”! – Bastou o rapazola ouvir para desembestar ribanceira abaixo. – O que é Sivaldo? Não posso não. Vó pediu pra eu ir comprar farinha! – É ligeiro. Me atravessa aqui que o rio está cheio! – Antes mesmo do garoto voltar a negar, Sivaldo, disfarçadamente, levantou a camisa e mostrou o revólver. Imediatamente o rapazola jogou Sivaldo na cacunda e entrou no rio com a água dando quase no seu pescoço. Já estávamos do outro lado do rio, quando, indignado com a cena, Bergão resolveu falar: – Toma vergonha, Sivaldo! Ameaçando o rapazinho com um revólver para forçá-lo a lhe carregar na cacunda! Que covardia é essa?

Surpreso, Sivaldo gritou. – Eu? Está louco é? Diz aí Leitão? Eu estou lhe forçando? – Nesta altura eles estavam bem no meio do rio, ao ouvir a pergunta, o rapazola fingiu tropeçar dando o maior tombo em Sivaldo, para em seguida cair fora. O “delegado” ficou quase a tarde toda mergulhando em busca do seu velho colt 45!

Muito tempo depois, um mês antes dos festejos de carnaval, a administração municipal enviou uma “força-tarefa” para melhorar as condições físicas do povoado onde seriam realizados os festejos de Momo. Toda a infraestrutura do “patrimônio histórico” precisava de reparos, assim, deslocou-se até o Porto quase duzentas pessoas… Pedreiros, pintores, garis, eletricistas, caçambeiros, cozinheiros, os cambaus… Entre os enviados estava o reliento do João da Caçamba (também falecido), famoso por “cortar uma água” lascada! Como Sivaldo também era muito chegado à uma meizinha e era muito amigo de João, logo lá estava os dois secando uma renca de meiotas! No intervalo do almoço, João corria até a caçamba e pegava uma garrafa de pinga que era solvida no fôlego.  Ambos bebiam todas e mais o “volume morto”. Tanto Sivaldo quanto João eram “expert’s” em degustação de destilados e uma meiota de pinga para eles era quase nada.

Eis que chega um domingo e a curriola de trabalhadores resolvem fazer lá mesmo no Porto, um churrasco regado à canjebrina e mesmo sem ser convidado, lá estava Sivaldo no meio com as suas indefectíveis muletas. Conversa vai, conversa vem e começaram a disputar quem se sagraria campeão do torneio (inventado na hora) de degustadores de canjebrina. Como Sivaldo não enjeitava parada, resolveu por “livre pressão” participar do torneio. Levaram uns três garrafões de pinga e os competidores bebiam em canecas cheias até os beiços. Improvisaram um juiz evangélico e deram a largada bebendo cada talagada que metia até medo. Cinco canecadas depois, só se via gente fugindo da disputa, sobrando apenas Luiz Teixeira, Joãozinho de Cipó, Junior Gordo, João da Caçamba e Sivaldo.

Dois copos depois, mesmo grogues lá estavam os finalistas, João da Caçamba e Sivaldo. Bebe aqui, bebe ali, bebe acolá e João, vermelho igual um peru, começou a sentir que poderia vir a perder a disputa para Sivaldo. Mais uma rodada de canecas cheias e João viu-se obrigado a dar uma sutil piscadela para que um dos colegas despejasse sorrateiramente na caneca de Sivaldo um dedal de raspas de unhas. Na rodada final o astuto juiz falou:

– É a última rodada! Se ninguém cair eu vou decretar empate técnico entre João da Caçamba e Sivaldo, delegado do Porto! – Nesta altura a roda de pessoas que contemplava a disputa aplaudiam efusivamente. João, malandro que era, pegou a caneca, fez o sinal da cruz e gritou:

– Vou lhe derrubar agora, malandro, quer ver? Você não aguenta beber nem mais este copo! Pode escrever…

– “Cê” tá “pru” fora! Aqui é Sivaldão da Vila Joaniza”! “Inda” tenho “fôrgo” pra beber mais um garrafão destes daí, meu fí! Quer pagar pra ver? – Assim que o juiz autorizou a dupla virou as canecas com vontade, e em menos de um minuto a raspa de unha fez o efeito desejado, Sivaldo tentou falar e a língua enrolou, se apoiou nos cacetinhos, conseguiu à muito custo ficar de pé, butucou os “zóios”, soltou um turrado (tal qual que onça), e ao tentar dar dois ou três passos cambaleantes desabou desacordado de cara no chão.  Acordou dois dias depois com a cara toda muchilada e após ficar mais de um mês sem sair de casa, parou definitivamente de beber.  A partir deste sucedido teve que conviver com a gozação de João que todo santo dia parava com a caçamba na porta da sua casa, dava uma bela de uma buzinada e gritava com cara de gozação:

– Bora tomar uma?

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

CSales, Ba. Quadra de Agosto de 2022. Crescente de Inverno.