Autor: Luiz Carlos Figueiredo
O bar do Geraldo Sol chegou à Cândido Sales no longínquo ano de 1989, após ser recrutado para reforçar o corpo docente do município. Ele era muito famoso na cidade de Vitória da Conquista, onde, além de poeta, era também cineasta, diretor teatral, cantor e agitador cultural. O gosto pelo novo e a vontade de fazer cultura para pessoas de outras paragens, pesou consideravelmente para que ele “desaguasse” por estas bandas.
Os longos e crespos cabelos emaranhados pelo vento e a velha barba desbotada que lhe batia à altura do peito, chamaria mais a atenção do alunato que a sua capacidade de improvisar e desconstruir os métodos tradicionais do ensino. Este era o tempo em que o Grupo Teatral Arte & Manhas se apresentava em toda região divulgando a arte cênica de “Candin”, subindo em palcos de cidades como Itabuna (na Bahia) até Jequitinhonha (nos Gerais). Quem via Geraldo Sol escondido atrás daquela “barbona”, não tinha noção do excelente artista e da grande pessoa que habitava aquele corpo estranho. Logo uma amizade sincera e respeitosa nasceu entre ele e os integrantes do Arte & Manhas (Odenir Ferraz, José Carlos Lima, Jaivan Aciole, Luiz Carlos Figueiredo). Não demorou muito e lá estava ele assumindo a direção da peça “DA SOLIDÃO DOS POETAS” – apresentada em aproximadamente 15 cidades do Sudoeste da Bahia e do Norte de Minas Gerais toda composta em versos e prosas.
Em 1994 a peça “O DEFUNTO MAL MORRIDO” foi contemplada com o prêmio de melhor texto teatral do Festival de Inverno de Vitória da Conquista. O intercambio nacional fez que o Arte & Manhas (e a minha pessoa por tabela) passasse a ser reconhecido no circuito cultural dos festivais de teatro, inclusive, participando do FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO DE ITABUNA onde a montagem “DA SOLIDÃO DOS POETAS” recebeu menção honrosa e os atores Cândido-Salenses (Ave Boninho!) foram bastante elogiados. O ex-global Jackson Costa, que integrava o corpo de jurados deste Festival rasgou seda para a nossa trupe.
Enquanto o grupo teatral surfava nas ondas das várias apresentações o professor Geraldo seguia por aqui com a sua vidinha “mais ou menos”, sempre regada a uma canjebrina, devidamente entrelaçada às cordas de aço – constantemente dedilhadas – do seu velho violão. Um dos prazeres do bardo por aqui (além de tomar a sua aguardente) era trocar uns dois dedos de prosa com os amantes da madrugada. Geraldo Sol varava a noite ouvindo o que os “excluídos” (mendigos, drogados, prostitutas, relentos e até um ou outro poeta) tinham para dizer. Enquanto juntava material para escrever um livro ele empilhava namoradas, tendo sempre uma sincera proposta de casamento para cada uma delas. Se orgulhava dos sete casamentos que tivera, com sete esposas diferentes e de sete maneiras distintas. Civil, espiritismo, “evangelismo”, catolicismo, “umbandismo”, hinduísmo e até na “Sociedade Alternativa” (seita criada por Raul Seixas e Paulo Coelho), espalhando uns sete filhos pelos sete cantos do mundo.
Várias pessoas achavam Geraldo Sol parecidíssimo com o cantor Raul Seixas. Tanto que ele levava a tiracolo alguns cartazes de um show que realizara em Conquista na década de 1980, “O Sol canta Raul” onde aparecia de óculos escuros e com seu violão de estimação. A voz de Geraldo (quando Cândido-Salense) já não era mais a mesma, encontrava-se velha e rouca. A semelhança do cartaz com o “maluco beleza” fez que ele fechasse uma tournée por várias cidades do Vale do Jequitinhonha, caindo tudo por terra quando ele fez o primeiro show na cidade de Joaíma. Após o choque de realidade, ele foi aconselhado a desistir da empreitada já que a sua voz não o ajudava mais. Não se importou com a quebra de contrato, virou-se, pediu uma cachaça e recitou poemas até o raiar do dia.
Tocou muitas vezes debaixo da “árvore chorona” que existia no fundo da casa do poeta e violeiro Billy Roger da Viola. Quando acontecia as cantorias e a música caía no gosto da árvore, ela emitia através das suas folhas, pequenas gotículas de água. Sabíamos assim, que a referida música havia sido aprovada. Geraldo e Roger trocavam constantemente figurinhas musicais, a música que mais gostávamos do repertório de Geraldo falava dele mesmo, era uma ode a si próprio e a letra dizia mais ou menos assim:
(…) Fiz uma canção tão besta e pobre…
Só pra ver se vocês descobrem
Os mistérios que ela tem.
Botei um violino antigo,
Vixe, nossa, que perigo…
Pode constranger alguém.
Rá, rá, rá cambada de idiotas,
Mas que bestas são vocês.
Sei que sou um cabeludo metido e besta
É assim que eu mais me adoro,
Foi assim que Deus me fez
Rá, rá, rá cambada de idiotas,
Mas que bestas são vocês. (…)
Apaixonado pelo Porto de Santa Cruz, Geraldo Sol não pensou duas vezes quando recebeu o convite para administrar o povoado, se mudando logo no dia seguinte de mala e cuia. Além de levar a esposa que lecionaria na pequena comunidade, o bardo – que na época tinha uma filhinha de dois aninhos de idade – viu a chance de escrever o seu famoso livro que nunca tinha saído da sua memória. Nos primeiros meses houve uma interação profunda dele com a comunidade que o elogiava bastante, porém. à medida que os dias foram passando começaram a chover reclamações. Era nego reclamando da cachaça do poeta, do pagamento que ele recebia para fazer absolutamente nada e até os que implicavam com o seu jeito de cantar.
Neste tempo um dos moradores mais famosos da localidade era um caboclo chamado Sivaldo. Magrelo, desengonçado, vinte e poucos anos de idade e que dera o azar de quando criança ser atingindo por uma aroeira enorme que lhe caiu sobre o lombo. Apesar de todo o tratamento que o fez voltar a andar na idade adulta, ele se via obrigado a andar ancorado por dois “cacetinhos” que constantemente eram utilizados como arma nas brigas que ele arrumava no povoado. Sim, apesar da limitação física, Sivaldo era “encrenquerim” feito o diabo! Ia para as festas do entorno do povoado montado na mula Jandira (de sua estimação) e lá para as tantas, se alguma cabocla se negasse a dançar com ele o fuá tava formado. Metia os cacetes no fifó, apagava o candeeiro e quebrava todo mundo literalmente no pau. Depois, saltava no lombo de Jandira e caía na lapa do mundo. Apesar da sua limitação, era um exímio cavaleiro. Andava pelas ruelas do Porto portando um velho revólver que utilizava para se impor diante dos desafetos. Quando amanhecia com a camisa ao avesso saía atirando a torto e a direito nas árvores do povoado. Foi n’uma destas bistuntas que Geraldo Sol (munido da autoridade que o cargo lhe conferia), lhe passou uma violenta descompostura diante de todo mundo. Ah, pra que? Pra lá de rancoroso, Sivaldo resolveu fazer da vida do poeta ali no povoado um verdadeiro inferno.
A partir daí, eles que eram antigos companheiros de copo passaram a se odiar mutuamente. As denúncias de Sivaldo e amigos chegavam aos montes no Centro Administrativo, porém, Geraldo Sol esperto como era, procurava relatar aos “superiores” a versão real do sucedido antes de chegarem às denúncias formalizadas, assim, ia ganhando sobrevida no cargo.
Após alguns meses de rusgas, lá estava o poeta como toda noite, no boteco de João Saracura (onde se tomava a melhor cachaça do Porto) e após tomar a sua dose habitual, resolveu entrar na conversa que acabou lhe custando o cargo. O bar cheio até os beiços, gente de todo tipo jogando conversa fora e quando Saracura falou que Jesus Cristo havia criado o céu, a terra e o ar, Geraldo Sol soltou a sua sarcástica e indefectível gargalhada.
– É o que? “Num” foi isso não? “Vancê” está rindo de Cristo, é?
– O que Cristo tem a ver com a lua? Deus é a natureza como um todo, vocês são um bando de ignorantes?! – Pra lá de “medicado”, Geraldo Sol expôs todo o seu conhecimento “científico” o que para os presentes representou uma blasfêmia contra Cristo. Isso era tudo o que o astuto Sivaldo (também já falecido) queria. Imediatamente jogou todos os moradores do Porto contra Sol que mesmo embriagado percebeu que tinha caído em uma cilada!
– Como é que o Prefeito coloca um ateu destes para ser o nosso administrador? Nós não queremos ateus aqui não! – Gritou Sivaldo subindo no balcão de madeira de Saracura e fazendo um discurso inflamando!
– Eu não quis dizer isto! Você está mentindo! – Gritou Geraldo!
– Cala a boca, ateu desaforado! Como você tem coragem de falar mal de Jesus Cristo? – Quando Geraldo percebeu estava sendo escorraçado do bar e só não foi linchado porque a sua esposa/professora ainda detinha o respeito de todos e aproveitou para levá-lo para casa.
No dia seguinte logo cedinho, mal se abriram as portas do Centro Administrativo e lá estava Sivaldo e mais duas dezenas de moradores enfurecidos munidos de cartazes com palavras de ordem, relatando o sucedido ao prefeito com altas doses de exagero. Adivinhe quem ganhou a queda de braço? Uma semana depois um choroso Geraldo Sol se despedia da comunidade e partia com a sua mudança rumo à Vitória da Conquista.
O poeta (ator, compositor e agitador cultural), retornaria algumas vezes à cidade de Cândido Sales para rever os amigos, porém, exatamente em uma destas micaretas que aconteciam na cidade de Vitória da Conquista, Geraldo partiria (tinha uma pancreatite aguda) desta para outra, inclusive por não ter tido a oportunidade de ter sido atendido em tempo hábil em um dos hospitais conquistenses.
A passagem rápida de Sol por Cândido Sales elevou muito o padrão cultural da época. Os amigos imaginam que hoje, onde ele estiver, deva estar dando a gargalhada que virou marca registrada no meio cultural da cidade e cantando a música que descontruía completamente a sociedade formal.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
CSales. BA. Quadra de Agosto, Crescente de Inverno de 2022.